sexta-feira, 2 de novembro de 2012

NA ROTA DO TURISMO: O ECOTURISMO NA ILHA

                       III ENCONTRO DA ANPPAS

                           23 A 26 DE MAIO DE 2006

                                  BRASÍLIA - DF
O natural e o Humano na Trilha do Ecoturismo: notas sobre a Ilha de Mosqueiro, Belém/PA

 

Maria Augusta Freitas Costa - Universidade Federal do Pará

Maria Goretti da Costa Tavares – Universidade Federal do Pará
Resumo

Este trabalho tem por objetivo analisar a inserção da Trilha Ecológica Olhos D’Água, localizada na Ilha de Mosqueiro, um distrito de Belém do Pará, na rede global do turismo (arquitetada pelas agências promotoras do turismo e eventos, pelos hotéis, restaurantes, pelas redes de infraestrutura, pelos fluxos de informação e de demanda.) de forma a entender a relação dos empreendedores do turismo ecológico com o espaço vivido (TUAN, 1980) e com as atividades econômicas da população das três comunidades existentes no raio de ação da trilha, almejando identificar se esse empreendimento do “turismo verde” consiste em um locus de singularidade, diversidade sócio-ambiental, geração de emprego e renda, de preservação ambiental e de participação da população tradicional local (DIEGUES, 1996), ou seja, de desenvolvimento sócio-espacial (SOUZA, 2002).

Introdução

A Trilha Olhos D’água, que faz parte dos movimentos turísticos da ilha desde 1998, quando, como foi relatado anteriormente, ainda era denominada “I Trilha Ecológica de Mosqueiro”, abarca uma área que compreende solo de terra firme do tipo areno-argiloso cuja composição arbórea é predominantemente de mata de capoeira que resguarda espécies vegetais da floresta primitiva (FUNDAÇÃO... 2002). Localizada no entorno do Parque Ambiental de Mosqueiro com quem compartilha semelhanças físicas e onde estão assentadas seis comunidades, Castanhal do Mari-Mari, Caruaru, Espírito Santo, Itapiapanema, Tucumandeua, Tabatinga, essa trilha capta peculiaridades sociais e ambientais das duas primeiras comunidades e conta com um ponto de apoio na comunidade do Espírito Santo (um restaurante).

Essas comunidades, como seus moradores as autodenominam, de acordo com a Universidade Federal do Pará (2002, p.20), têm seus fundamentos nos trabalhos pastorais da igreja católica que agregam a população em função de um santo ou santa. Nesse sentido então configurando uma falsa convivência comunitária, pois o “comunitário” nessas espacialidades não ultrapassa as festividades religiosas (OP. CIT.).

No mundo atual onde uma das características é o imperativo da fluidez para a circulação, os espaços habitados por comunidades tradicionais embora não mais primitivas e autossuficientes, configuram testemunhos históricos de um passado faustoso e tradicional, ou seja, aqueles em que foi possível uma preservação “natural”, anterior à relevância social ecológica e, deste modo, mantendo maiores porções da natureza em seu meio geográfico pouco impactado pelas técnicas. A área que circunda a trilha Olhos D’água pode ser considerada um testemunho histórico desse passado onde a forte presença de corpos d’água formados pelos rios Tamanduá, Murubira, Pratiquara, Caruaru, Itapiapanema e Mari-Mari, além de furos e igarapés, cunharam a nomenclatura das comunidades. Cuja presença desses corpos hídricos propiciaram uma composição paisagística marcada pelas características de várzea com presença de palmeiras, floresta de várzea de maré com predominância de espécies de mangue e/ou de lianas, floresta secundária aluvial de terra firme e floresta de terra firme com cipó (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ, 2002, p.8).

A natureza do/no turismo ecológico da trilha Olhos D’água

Esses testemunhos históricos forjam a base para implementação de um projeto ecoturístico como o projeto da Trilha Olhos D’Água que, apesar de delimitar-se em um antigo caminho de 3688m de extensão em solo de terra firme utilizado pelos moradores das comunidades de Castanhal do Mari-Mari e Caruaru para interligá-las; propicia a observação da exuberância dos ecossistemas fluvial e costeiro dos corpos d’água encontrados nessa região do setor sudoeste da ilha de Mosqueiro, pois, o acesso à Trilha é realizado por meio fluvial em um percurso que dura em torno de quarenta minutos do trapiche existente na Vila de Mosqueiro até o Castanhal do Mari-Mari. Sendo o retorno à Vila de Mosqueiro também realizado via fluvial até outro porto – o porto Pelé, no rio Murubira, quando é possível visualizar as placas delimitadoras do Parque Ambiental de Mosqueiro e a paisagem de várzea ali encontrada No próprio percurso em terra firme entre as duas comunidades vislumbram-se as peculiaridades naturais provenientes da relação terra/água, pois vários furos e igarapés drenam essas comunidades sendo encontrados, em vários pontos dessa Trilha, olhos d’água derivando daí o nome da Trilha.

Entretanto, a dificuldade de proporcionar a visualização desses olhos d’água aos visitantes originou uma especulação em torno de uma possível troca de nomes, o que não ocorreu. Essa Trilha, criada pela Companhia de Turismo de Belém – BELEMTUR, teve sua implementação efetivada em 1998 tendo a Agência Distrital de Mosqueiro – ADMO, como parceira. Em 2002 a Trilha Olhos D’Água passou pela intervenção de um projeto de revitalização que, de acordo com a ex-Fundação de Parques e Áreas Verdes de Belém - atual Secretaria Municipal de Meio Ambiente – SEMMA - (FUNVERDE/BELEMTUR, 2002, S/I), culminou com “o levantamento do inventário faunístico e florístico da área, a sinalização interpretativa da trilha e o envolvimento mais participativo das comunidades, que poderão fazer da trilha uma importante fonte de recursos”. Desde novembro de 2003 a Prefeitura de Belém – PMB, através da BELEMTUR, vem elaborando um plano de reestruturação da gestão da Trilha Olhos D’Água cujo objetivo principal é transferir o controle dessa para as comunidades envolvidas por seu percurso. Essa ação conjunta da PMB/BELEMTUR a priore denotadora de autonomia às comunidades alocadas ao longo da trilha, necessária segundo Souza (2002) ao efetivo desenvolvimento sócio-espacial, é vista com temeridade por todas as pessoas envolvidas com a Trilha nas três comunidades:

Não deveria fazer isso não. Ela (a BELEMTUR) deveria fazer como experiência, antes do mês de julho pra ver como a comunidade se sairia.Moradora da comunidade Caruaru – 31 anos dez. 2003 (grifos nossos) 1

Os novos secretários acham que a comunidade tem que administrar a trilha que estava dando prejuízo para a BELEMTUR, porque ela mais fazia cortesias para as secretárias e o próprio pacote não pagava o custo... mas a trilha tem condições de dar lucro, eu faço a minha trilha e tenho lucro. [...] Eu acredito que a trilha (Olhos D’Água) em mais um ano não vai haver. [...] a BELEMTUR se preocupa com a capacitação para receber os turistas, mas não para o desmatamento. Morador da comunidade Espírito Santo – 35 anos, dez. 2003 (grifos nossos) 2

A temeridade dos moradores dessas comunidades, que se encontram distribuídos em três Micros Áreas distintas: a Micro Área 12, a 13 e a 14 (onde estão, respectivamente, Espírito Santo, Caruaru, Castanhal do Mari-Mari) de acordo com os relatórios do Programa Família Saudável da Secretária de Saúde – PMB; é fundamentada nas práticas vivenciadas nas comunidades. Apesar da PMB, da ADMO e da BELEMTUR garantirem que a transição será realizada com treinamento técnico e o devido preparo dos moradores, essas ações realizadas quando da implementação da Trilha Olhos D’água ao que parece foram pontuais e ineficientes, pois em agosto de 2003, após a festividade de Santa Rosa na comunidade do Castanhal do Mari-Mari, toda a área da sede da festa, suas adjacências e o campo de futebol dessa comunidade encontravam-se cobertos por copos, papéis e garrafas; os resíduos sólidos da festa3.

Indício, também, da ineficiência desses treinamentos técnicos é a constante deteriorização da sinalização da trilha pelos moradores do Caruaru e Castanhal do Mari-Mari, bem como das espécies florísticas e faunísticas, que em dezembro de 2003, após três meses de inoperância das atividades da Trilha, quando da mudança do diretor da BELEMTUR, sofreu um de seus maiores impactos – a queima de uma área de aproximadamente 40m2 na comunidade do Caruaru4. Essas evidências induzem ao questionamento da perpetuação ao longo do tempo, dos trabalhos técnicos e das políticas de educação ambiental que a PMB e a BELEMTUR dizem ter realizado com as comunidades durante a implementação da Trilha e, por conseguinte, aos que serão realizados por essas instituições durante a transição e efetiva transferência da gestão dessa trilha às comunidades.

A intervenção do projeto de revitalização da Trilha Olhos D’água realizado em 2002 pela atual Secretaria de Meio Ambiente do Município de Belém, que a classifica como uma trilha de percurso programado onde as interpretações e explicações sobre fauna e flora são realizadas por um guia que “é a alma de uma boa trilha” (FUNDAÇÃO... 2002, p. 23), pouco contribuiu como objetivava para o envolvimento mais participativo das comunidades ou à sensibilização dessas ao ecoturismo, nem a noção básica sobre esse ramo do turismo ou mesmo sobre o próprio turismo foi engendrado à população local pelo projeto de 2002. Em pesquisa realizada recentemente sobre o entendimento dos moradores das três comunidades envolvidas pela trilha apenas cinco (5) pessoas responderam saber o que é o ecoturismo em um universo de vinte e seis (26) famílias entrevistadas. Esse número diminui para três (3) pessoas se consideramos que as respostas de duas dessas pessoas em nada se relacionavam com essa atividade turística.

Tais fatores indicam que a preocupação de alguns moradores das comunidades é totalmente procedente e reforça a fala do morador da comunidade do Espírito Santo quando diz que a BELEMTUR não se preocupa em preparar a população, por exemplo, sobre os desmatamentos, cujas ocorrências foram intensificadas pelos moradores colocados à margem da participação da trilha, aprofundando os conflitos internos a cada comunidade e entre essas, como substrato, ampliando, como indica a Universidade Federal do Pará (2002, pp. 23, 24):

[...] os aspectos menos propiciadores de ações coletivas [...] O aspecto comunitário que o observador espera encontrar, oriundo das auto-denominadas “comunidades” é ao contrário, uma falsa convivência comunitária. Essas “comunidades”, por terem fundamento no trabalho pastoral da Igreja Católica, agregam os moradores em função da devoção a um santo ou santa. [...] Nas demais esferas da vida social, que não a religiosidade, tudo se resolve individualmente [...].

O potencial de integração dos valores naturais e culturais indutores da constituição das “paisagens notáveis”, característica essencial na configuração dos chamados “espaços de reserva de valor”, como os espaços destinados à prática do ecoturismo, acaba sendo enfraquecido pelos impactos ao espaço físico da Trilha Olhos D’Água, dificultando a continuidade das visitações a essa. Quanto menos valorizado pelo trabalho humano o meio ecológico maior a vantagem para um empreendimento voltado ao turismo ecológico, isso porque, em grande parte, como aponta Santos (1985, p.27 e 1999, p.32), “o meio ecológico já é meio modificado e cada vez mais é meio técnico” – tecnosfera.

A inserção das comunidades do Castanhal do Mari-Mari, do Caruaru e do Espírito Santo na esfera da atividade turística, muito embora nessa última de forma muito pontual, caracterizada apenas pela localização do restaurante que fornece as refeições aos turistas, provocou não só o agravamento das tênues relações coletivas dessas como das relações sociedade-natureza. Os aproximadamente 40m2 de floresta devastados intencionalmente pelo fogo na comunidade do Caruaru como represália às práticas turísticas da Trilha Olhos D’Água, muito provavelmente, atingiram espécies vegetais originárias de mata primitiva como a Andiroba (Carapa guianesis Aubi), árvore de grande porte que chega a atingir 30m de altura; a Castanha do Brasil (Bertholletia excelsa Humb e Bonpi); o Cupuaçu (Theobrama grandiflorum (Wilid. Ex. Spreng) Schum), uma espécie cujo fruto é muito apreciado. Esses exemplos florísticos, apenas algumas espécies das muitas encontradas em toda área de abrangência da trilha, compreende inúmeras possibilidades de uso pelas populações tradicionais da Amazônia como fornecedoras de madeira, fruto e remédio.

Se considerarmos a fauna que constituía habitat nessa parte de mata como o Jacana-preto (Jacana jacana), o Socozinho (Butoriades striatus), o Camaleão (Iguana iguana); a Cotia (Nasura nasura), a Preguiça de bentinho (Bradypus tridactylus), o tatu (Dasypus sp) e tantos outros que foram inventariados no Parque Ambiental de Mosqueiro e que pela similitude física desse com a trilha podem ser encontrados também nessa; o abalo ambiental provocado torna-se ainda maior.

A matéria natural enquanto recurso turístico projeta-se ao atendimento de uma delicada relação de produção, pois o turismo ao ensejar suas formas dominantes de privatização e mercantilização da natureza exige transformações na paisagem que a adeqüe aos anseios de uma demanda específica. Ao considerarmos o espaço da produção do turismo ecológico nas comunidades do Caruaru, Mari-Mari e Espírito Santo observa-se que essas adequações vêm agravando fatores e provocando a diluição de suas características exuberantes e singulares, sendo seu meio ecológico constantemente alvo de imprudências, negligências e imperícias do poder público municipal, dos técnicos da BELEMTUR e da população local, como relata uma moradora da comunidade de Caruaru5: “a própria floresta, nós estamos sentindo porque um senhor descampou um pouco a trilha para fazer carvão”. Segundo Cardoso (2000, p. 104):

[...] A preocupação pelas condições de vida dos moradores, bem como, a manutenção do equilíbrio e dos recursos naturais da ilha, são preteridos, em benefício dos interesses do poder sócio-econômico-político situado em Belém e que em última instância definem os destinos de Mosqueiro e de sua população. Os mosqueirenses percebem essa situação, em níveis mais imediatos: “tudo aqui é feito para o veranista, a gente não conta pra nada”.

A manutenção das condições de ordenamento do turismo descritas por Cardoso (IDEM) no desenvolvimento do circuito ecoturístico de Mosqueiro apresenta-se como substrato de uma tipologia do turismo que se focaliza essencialmente, como nos mostra Fenell (2002), na experiência e no aprendizado sobre a natureza, contribuindo para a conservação ou preservação destas. Portanto, o que se observa nos discursos do ecoturismo é a perpetuação da visão originária do termo natureza: “[...] Não há dúvida de que a cultura pode ser parte da experiência do ecoturismo; no entanto, a questão é que muito provavelmente ela é uma motivação secundária e não um dos fatores principais como no caso da natureza e dos recursos naturais” (OP. CIT. p. 53).

Procedendo dessa maneira o ecoturismo apresenta-se mais como fomentador de desequilíbrios que de sustentabilidade, pois desvirtua a complexidade embutida nesse objeto social que é a natureza, na visão de Coelho (1999) ao proceder assim, seus planejadores correm o risco de difundirem uma noção estreita desse termo, pois como afirma Diegues (1996) a natureza deixou de existir em seu estado puro. Nesse viés, verifica-se, por exemplo, que a área símbolo e principal marca desse tipo de turismo no mundo, a Amazônia, é habitada por várias populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas, de pescadores, que possuem maneiras próprias de lidar com os objetos de seu meio, e estabelecem sistemas simbólicos próprios para o entendimento da natureza, como ocorre no entorno da trilha Olhos D’água.

Segmentos e redes: relativizando o natural e o humano na trilha do ecoturismo

Evidentemente, como nos mostra Santos: “O que aparece aos nossos olhos como natureza não é mais a natureza primeira, já é uma natureza segunda... Isso é fácil de constatar numa cidade ou numa zona agrícola e é menos perceptível em certas áreas onde as modificações impostas pelo homem são menos visíveis”. (1996, p.172). Então, preponderantemente engendra-se a necessidade de repensar a inserção de áreas florestais no circuito produtivo do turismo, pois os eventos do ecoturismo não podem mais se destinar simplesmente a criação, como diz Diegues (1996, p. 73), de espaços de “adoração da natureza” despojados da presença humana, principalmente os espaços baseados no modelo Norte Americano de “Unidade de conservação", se é que os defensores do ecoturismo pretendem seguir sua predisposição à seguridade.

Contudo, mesmo quando apresentam esse redirecionamento e apesar da variação de escala, os empreendimentos associados a esse tipo de turismo apresentam impactos sócio-ambientais ou distorções na distribuição de seus benefícios que os tornam suscetíveis a certos questionamentos e relativizações como atividade sustentável, a exemplo do agravamento de conflitos locais na área da trilha Olhos D’água com sua implementação. Em parte, esses impactos ou distorções são gerados porque enquanto um bem do meio técnico-científico-informacional os espaço do ecoturismo são ordenados por redes. As redes surgem como a nova arquitetura das conexões que dão suporte às relações avançadas da produção e do mercado, uma vez que é ela que dimensiona a organização geográfica das sociedades (SANTOS, 1985; 1999).

Portanto, quem controla as redes, determina o padrão geográfico das estruturas, imprimido-lhe como mostra Tavares (1999) a constituição de nódulos privilegiados dentro dessa rede, ou seja, como define Santos (1994) os espaços do mandar e os espaços do fazer. É por isso que os espaços do ecoturismo expressam cada vez mais um meio ecológico urbanizado, uma vez sendo controlados pelas redes de turismo mundial. Tais espaços acabam pelos fluxos de demanda e financeiro que a ele estão arrolados sobre o signo do preservacionismo configurando-se como nódulos privilegiados dessas redes, isso porque, segundo Santos (1999, p. 221): “As redes são técnicas, mas também são sociais [...] Animadas por fluxos, que dominam o seu imaginário, as redes não prescindem de fixos–que constituem suas bases técnicas - mesmo quando esses fixos são pontos. Assim, as redes são estáveis e, ao mesmo tempo dinâmicas [...]”.

O projeto ecoturístico implementado nessa porção do oeste mosqueirense desde sua criação arquiteta-se enquanto rede, visto que de início selecionou uma “paisagem virtuosa” onde foram destacados vários pontos para observação e apreciação da “natureza” pelos visitantes. Essa seletividade realizou-se de acordo com a intencionalidade de seus gestores (DIAS, 1995), especificamente - a BELEMTUR que controlando a rede controla a organização espacial da área. A seletividade fundada sobre a mobilidade crescente dos capitais, como indica Dias (op. cit.) é um marco na caracterização das redes, entretanto, são as relações entre fixos e fluxos que melhor as definem. Na trilha Olhos D’água essas relações são traçadas por um sistema de objeto e um sistema de ações edificado pela mediação das técnicas e racionalidades de uma rede global (ver organograma 01) articulada por um suporte infraestrutural de hotéis, agências de turismo, empresas de transporte e de marketing, restaurantes e bares, saneamento e circulação, etc.

A inserção da trilha ecológica Olhos D’água nessa rede global vincula-se à relação contraditória das redes dentro do processo de construção dos espaços do ecoturismo permitindo tanto a ampliação da consciência sobre a diversidade ambiental e cultural existente no mundo, através do contato com variado leque de culturas locais; quanto à saturação de imagens, criação e circulação inusitada de ícones para o consumo em grande escala: “a experiência individual direta com o ambiente de paisagem rústica e o nativo pitoresco”. É assim que as redes de comunicação informacional ganham primazia como rede de suporte do ecoturismo ensejando a produção e a comercialização do “verde”, e transformando-o, de acordo com Ribeiro, num “valor dos mais apreciados para a afirmação do individualismo contemporâneo já que, pretensamente, propicia um afastamento dos simulacros e das rotinas aos quais os indivíduos e suas redes sociais estão expostos no dia-dia(1991, p. 73). Nesse ínterim, parece que por um rastro de preservação histórica, cria-se um novo mito para o que La Blache denominou de problema de dosagem, referindo-se as possibilidades que o meio oferecia ao homem:

[....] Pelo contrário, à maioria de outros pensadores parte-se do homem para chegar ao homem; representa-se a Terra como “palco onde se desenrola a atividade do homem”, sem refletir que o mesmo palco tem vida. O problema consiste em dosear as influências sofridas pelo homem. (LA BLACHE, 1954, p.29)

A redescoberta das singularidades mediadas pelo meio proposta pelos novos estilos do turismo, mais personalizados e diferenciados, induzem a valorização crescente de “destinos mais primitivos, com infraestrutura mais rústica, original e integrada ao ambiente, aproveitando-se o material e as técnicas construtivas locais (LEONY, 1997, p. 54), parece ser o rastro dessa preservação histórica que imbuída da “necessidade pós-moderna” do retorno ao verde funda o novo mito, onde a dosagem da influência do meio sobre o homem tende a caracterizar-se como uma medida estática e a-histórica imposta pelos planejadores turísticos, culminando na sacralização do “ribeirinho”, da “população tradicional”.

Os empreendimentos ecoturísticos para possibilitarem o desenvolvimento local e a sustentabilidade dos ambientes devem renegar intervenções impositivas, a organização sócio-espacial das populações tradicionais não é um museu vivo, como nos lembra Figueiredo (1999, p. 87), onde se deva transformar qualquer curiosidade humana das comunidades visitadas em atração “circense” e atribuir-lhe um valor monetário, ou ainda, onde em nome do preservacionismo deva ser mantido estático, a-histórico; a cultura, nos diz Santos (1999, p. 269), é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio. Na Trilha Olhos D’água as peculiaridades da organização sócio-espacial local tem se realizado de maneira pouco integradora entre os moradores locais e os visitantes, inviabilizando o reaprendizado profundo de que trata Santos, um exemplo claro disso é a representação do fabrico da farinha de mandioca.

A inserção desse hábito popular ao circuito turístico tenta mediar o natural e o humano na trilha do ecoturismo em Mosqueiro, todavia, a simples representação do fabrico da farinha não é capaz de promover uma troca de experiências entre visitantes e visitados e de ambos com o meio ecológico, relação exacerbada pelos precursores do ecoturismo e pelos gestores da trilha olhos D’água, pois em muitos casos essa representação chega a ser tão artificial que a moradora da trilha que demonstra o fabrico chega a ficar constrangida diante de um grupo de turistas espanhóis ao ter que ir buscar farinha em sua casa para poder realizar a demonstração.

Nesse ínterim, a BELEMTUR imprime tanto um sistema de objetos quanto um sistema de ação que normatizam o espaço mosqueirense para atender os fluxos e refluxos do ecoturismo em escala mundial, como mostra o gráfico abaixo, não para uma apropriação efetiva desse espaço, mas para o consumo do conteúdo simbólico de suas paisagens.

A atividade ecoturística apropria-se não só do espaço físico, mas do conteúdo simbólico das paisagens, revestindo o espaço então de visões simbólicas, formadas por um projeto de construção imediata do mundo (BOURDIEU, 2003), como também, “por sonhos ou por arquitipos culturais sublimares (CONTI, 1997, p. 19). Ë, em grande parte, o simbolismo do “verde amazônico” o possibilitador da expressiva participação de visitantes estrangeiros à trilha Olhos D’água como mostra o gráfico acima. Para Santos (1999) esses fatores refletem a lógica precisa que a ordenação mundial impõe ao local e a maneira com que cada local lhe responde realçando “suas virtudes por meio dos seus símbolos herdados ou recentemente elaborados, de modo a utilizar a imagem do lugar como um imã” (OP. CIT., p.221). Na trilha Olhos D’água, em Mosqueiro, essa ordenação se expressa na composição de uma intensa rede como demonstra o organograma 01:

ORGANOGRAMA 01:
A REDE GLOBAL FORJADA A PARTIR/COM A TRILHA OLHOS D’ÁGUA EM 2004.
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FONTE: Trabalho de Campo realizado em janeiro de 2004.

 

O organograma acima representa uma tentativa de ilustrar os fluxos e fixos que compõem os sistemas de objetos e de ações inscritos na rede do turismo ecológico na qual estão inseridos os aspectos naturais e humanos da trilha Olhos D’água, por meio desse é possível verificar em uma dada realidade aquilo que Santos (1999, p. 214) denominava de superposição de redes: “E onde as redes existem, elas não são uniformes. Num mesmo subespaço, há uma superposição de redes, que inclui redes principais e redes afluentes ou tributárias, constelações de pontos e traçados de linhas.” No organograma acima a rede principal do turismo ecológico vinculado a trilha mosqueirense está representada no centro pela linha azul, essa rede é acessada por inúmeros fluxos representados por outras linhas que, por sua vez, são articuladas pelas redes afluentes ou tributárias, onde hotéis, agências de viagens e de turismo, donos de bares, restaurantes etc. controlam e ordenam esses fluxos nas diversas escalas, desde a local até a mundial.

A intensidade das relações estabelecidas entre essas várias redes é diversa e pode ser percebida pela espessura com que as linhas se comunicam. Partindo desse pressuposto averigua-se que são os alemães os que mais procuram a ilha de Mosqueiro para desenvolver atividades vinculadas ao turismo ecológico, além deles, norte-americanos e franceses também compõem fluxos expressivos dentro da rede da trilha Olhos D’água, ao contrário dos brasileiros cujo fluxo mais relevante advém de São Paulo. Uma provável explicação para tal fato pode ser encontrada na existência, em grande parte, de refúgios naturais em todo o território nacional, e pela ainda primazia do turismo de sol e praia.

Entretanto, apesar da elevação dos fluxos destinados à trilha Olhos D’água, como os próprios moradores relatam, esses não se distinguem dos movimentos turísticos direcionados a outras porções da ilha que se restringem, como afirma Cardoso (2000), a um pequeno número de turistas “[...] que organizados em pacotes turísticos, estendem sua estadia em Belém, passando na ilha o tempo necessário para o City tour e às vezes para o almoço, não chegando a alcançar dez horas” (OP. CIT., p. 95). Contudo, esse curto intervalo de tempo de permanência dos turistas no local de recepção, na trilha ecológica de Mosqueiro, ao mesmo tempo em que é real a tendência a um prolongamento.

Como exemplo da tentativa de conciliação dos aspectos naturais e humanos dentro da trilha, além da casa de farinha (já mencionada em outra ocasião), através da qual se busca resguardar a singularidade da cultura amazônica; e da castanheira do Mari-Mari, uma espécie da flora local que dera nome a uma das comunidades abarcadas pela trilha. Esses nós privilegiados são interligados por fluxos representados no organograma pelas linhas azuis, cuja espessura indica a intensidade com que esses fluxos se relacionam com cada uma das três comunidades envolvidas pela trilha.

Numa abordagem sobre o espaço do ecoturismo é preciso, pois, relativizar a intensidade com que se denotam seus dois principais elementos: o natural e o humano, que analisados isoladamente repercutem coisificações. Essa relativização promoveria um redirecionamento do cunho excessivamente naturalista dos empreendimentos ecoturísticos, propiciando experiências autênticas e não programas, que funcionariam como importante forma de conscientização mediante a observação participativa dos turistas.

Na trilha Olhos D’água os indícios desse redirecionamento são quase inexistentes limitando-se a integração de um pequeno número de moradores locais em seu circuito, o que inviabiliza as experiências autênticas e por demais enriquecedoras. Essas experiências, de acordo com Rodrigues (2003), poderiam ser engendradas pela simples hospedagem nas residências locais que funcionaria como dinamizadora da população local integrando-a diretamente na atividade turística, como relata uma moradora local6:

Pode (as pessoas ao visitarem a trilha podem observar e conhecer o modo de vida existente na comunidade), se eles pararem meia hora para conversar com os moradores.Moradora da Comunidade do Castanhal do Mari-Mari, 30 anos de idade.

Entretanto, o turismo alternativo pautado no desenvolvimento conservacionista, ressingulador, identitário, participativo representaria, de acordo com Guattari apud Benevides (1997), um foco de “revoluções moleculares” orientadoras das práticas revolucionárias pós-socialismo real com base no local, tendo a questão da autonomia como central. Se a maioria da população não puder participar diretamente da gestão dos recursos sócio-espaciais, não ocorrerá um pleno desenvolvimento, esse segundo Souza (1997, p.18-19) é o:

Processo de superação de problemas e conquistas de condições propiciadoras de uma maior felicidade individual e coletiva, o desenvolvimento exige a consideração simultânea das diversas dimensões constituintes das relações sociais (cultura, economia, política) e, também, do espaço natural e social.

Em sua obra ‘Mudar a Cidade’ Souza (2002) apresenta a autonomia como mecanismo responsável por determinar o que ele chama de desenvolvimento sócio-espacial, ela estaria correlacionada a liberdade máxima dos indivíduos de planejar, executar e refletir criticamente sobre a sua situação e sobre as informações de que dispõe com igualdade de oportunidades, ou seja, a uma autonomia individual; e às instituições sociais que garantam justiça, liberdade e possibilidade do pensamento crítico, encarnadas e defendidas pela coletividade, ou seja, a uma autonomia coletiva. Isso determinaria o valor intrínseco e instrumental da autonomia denotando um caráter de qualidade de vida e justiça social aos indivíduos de uma sociedade. A liberdade dos indivíduos das populações tradicionais deliberaria sua autonomia para agir coletivamente, gerando mais justiça social, em outras palavras, maior oportunidade de participação direta desses nos processos decisórios relevantes à implementação das redes impostas pela demanda do ecoturismo.

Considerações finais

Fundamentalmente o turismo e o ecoturismo inclinar-se-ão a um desenvolvimento mais amplo quando proporcionarem um envolvimento real de todos os atores sociais nos processos de implementação de seus circuitos, Silveira (1997), ou seja, quando houver uma clara distinção entre a participação ampla em todos os estágios do processo de planejamento, implementação e controle de ações de desenvolvimento, e a simples manipulação de recursos humanos locais para a implementação de projetos, programas ou planos turísticos concebidos de fora e impostos à população de forma mais ou menos autoritária, Souza (2002). Entende-se, assim, que a participação local não se confunde com modelos que “informam” a população sobre as ações políticas, ou que essas imputem outros modelos ou propostas de desenvolvimento a sua localidade, por conseguinte, é a população local que deve selecionar que ou quais atividades quer para sua localidade e de que forma essas se espraiaram em seu território, consequentemente, a população da área de origem poderá decidir perder o dinheiro que o turista gasta no local se considerar que a atividade direciona o lugar à degradação ambiental e à prostituição, por exemplo.

O ecoturismo poderia contribuir para a tradição crítica dos movimentos de contestação radical à ordem estabelecida, Benevides (1997), contrapondo-se ao turismo de massa e a degradação socioambiental, imprimido os anseios dos grupos locais e contribuindo para minorar uma realidade marcada por heteronímia, disparidades e preconceitos, em vez de simplesmente se ajustar a ela, e nesse viés, de acordo com Souza (2002), apresentando-se sem ressalvas, como um fator de desenvolvimento sócio-espacial. Nesse contexto histórico e ideológico as propostas de ecoturismo, deixariam de ser ‘mitos modernos’ de ‘conservação do mundo’, que apregoam apenas retorno econômico (geração de emprego e renda) como forma de controle da degradação dos recursos naturais e, principalmente, de controle da/pela população local.

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Notas

1 e 2.Informações obtidas em entrevistas realizadas, em Mosqueiro, em dezembro de 2003.

3. Informação obtida em trabalho de campo realizado, em Mosqueiro, em agosto de 2003.

4, 5 e 6. Informação obtida em trabalho de campo realizado, em Mosqueiro, em dezembro de 2003.

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