terça-feira, 20 de novembro de 2012

A FICÇÃO E A ILHA: A LENDA

Autor: Prof. Alcir Rodrigues

        Puc puc puc puc...

        O barco-motor ia assim deslizando e decepando ao meio o piso líquido à sua frente.

        Era já a Curva da Cobra. Era já noite alta. Ar sereno. Estrelas salpicando o céu. Maré seca.

       O túnel formado pelas ribanceiras e árvores da margem, tão compridas que se esticavam como querendo tocar o céu, ia a pouco sendo vencido pela embarcação. Nem um leve temor parecia assustá-los, apesar das histórias que se contam sobre o local...

        Motor já desligado, barco empurrado por varas. Foi escolhido onde ancorar. Lugar bonito. Muitos açaizeiros. A gente nem é capaz de lembrar mais como era quando os palmiteiros mutilaram os açaizais uns dez anos... sei lá, talvez onze.

         ─ Por que aqui? ─ perguntou Simão.

         ─ Muito seco pra acolá, respondeu Pedro quase gritando lá da proa. ─ Dá não. Melhor ficar aqui té enchente.

         Era preciso dormir um pouco. A cachaça ajudava. Bebida, fumo, todos dormiram depois. Mas não muito. Tempo não dava.

         Logo amanheceu. Cabeça da maré vinha vindo. Não fosse a pressa, podia se admirar o céu e as nuvens, as siriubeiras e as aves, ou mesmo os sararás na lama.

         Um pouco de café com farinha. Torradas velhas, água amarela do rio pra beber. Às vezes, João queria deixar essa vida. No entanto, estava acostumado. E havia ainda a necessidade que tinha do trabalho. E, quem sabe no fundo, não gostasse de viver assim. Mas é uma vida tão dura... O peixe às vezes farto, às vezes escasso. As redes ora boas ora rebentando... o barco fazendo água, precisando de calafeto. A saudade das namoradas que quase não teve, a família que estava distante, de quem não tinha notícia um tempão. A pobreza de tudo, de quando em vez, deixava-o assim.

          ─ Vamos, João, chega de folga.

          ─ Calma, Pedro, já vou.

         Era assim sempre: estando concentrado, pensando-pensando nas coisas... o trabalho, sempre o trabalho acima de tudo.

       Subiram mais um pouco o igarapé. Lá na estância descarregaram os esteios que tinham transportado como biscate. Serviço brabo sem luvas. Acapu tem muitas ferpas. Sem falar no peso. Mão do carregador sofre, ombro mais ainda. 
         Serviço findo, conversa fiada depois da água gelada. Tudo neles era suor e mau odor, sentados os três ali na beira em cima daquelas raízes grossas e lamacentas. Maré já vazava. Carecia não demorar além do tempo.

          ─ Quanto vamo pegar?

          ─ Uns 20 mil, acho...

          ─ Mesmo que seja só 10, eu já faço muita coisa com minha parte.

        Seu Armino aproximou-se. Disse, estendendo a mão para Pedro:

          ─ Tome, pegue o dinheiro de vocês.

          Era dinheiro razoável.

          Tinha festa naquela noite. Muitos iam ao terreiro do tio Oragão. Os três também.

          João, dos três, é o mais atarracado. É branco. O sol bronzeara um pouco. É o mais novo. Sonhador, mas a ideia de mudar de vida já quase lhe fugia da memória, desesperançoso, apesar da pouca idade... triste. Já quase não fala com ninguém. Os dois outros estranharam no início, mas se acostumaram com seu jeito.

          Simão é mediano de altura. Mulato, pouco magro. O que não quer dizer fraco, o contrário disso. É otimista. A gente pode dizer que ele gosta da vida que leva. Trabalha com barco uns oito anos.

          Pedro é alto e forte. O mais velho. Talvez por causa disso é respeitado por todos. Não só os dois: todos. Também é calmo e observador. Experiente, tem sempre muitas histórias para contar.

           A gente pode dizer que são um trio. Se entendem.

          Pararam no porto do Leônidas. Beberam. Muita branquinha depois, banho de rio. Água lamacenta, poluída por muitos sanitários. Pessoas expulsas, no processo capitalista selvagem, deixam o chão seco para (sobre) viver na beira do igarapé. Mas isso pouco importa. Bebido, ninguém dá bola. Esfrega-se o corpo com sabão em barra, como se essa água levasse o sabão depois e não deixasse sujeira no lugar do suor pixelento. Não é lucro. Mas não ligavam.

          Aprontaram-se para a festa. Desceram do barco, pegaram uma canoa até a beira, mas a lama era muita. Arregaçaram as calças, sapatos nas mãos. Lama, lama, lama.

         Engataram, saindo do porto, no primeiro boteco, emporcalhados. A gente não sabe se era para se lavarem ou para tomar mais pinga.

         Depois, movidos como que por instinto, passaram na casa do mestre Garinaldo, fazedor de montarias.

          ─ Discupe as hora, Mestre, é...

         ─ Ora, que discupe que nada, Pedro. Entre. Entre vocês também.

          ─ Seu Naldo... ─ disse um.

          ─ Seu Naldo... ─ disse o outro.

          Tímidos, os dois foram entrando.

           ─ Clarinda, venha ver quem taqui! ─ gritou o Mestre.

           Mestre Naldo, como gostava de ser chamado, gostava muito de Pedro. Pedro tinha sido criado ali, com Mestre Naldo. Sua profissão, quem lhe ensinou o principal? O Mestre, ele, homem bom e sério, agora velho e meio decrépito.

           ─ Pedro, seu filho dumégua! Agora é que aparece? 

           Era Clarinda, que estava ali na sua frente vinda de detrás da cortina rasgada, com um camisolão ruço, já meio rasgado.

           Ela e Pedro abraçaram-se. Depois de trocarem algumas palavras, ela, virando-se para os dois, disse:

           ─ Vocês estão bem?

           ─ Sim ─ respondeu um.

           ─ Sim ─ respondeu o outro.

           ─ Vamo tomá uma branquinha? ─ foi o convite do Mestre.

           Muita dose depois, já bem tarde, todos se foram. Todos, menos o Mestre. Até Clarinda foi.

          Dentro da sede, confusões, empurra-empurra, bofetões. Hesitaram um pouco, depois entraram, mais levados pelas pernas e por Clarinda que por suas próprias vontades. Pesados, quase nem saíam do canto onde estavam.

          Ali por dentro era assim: confusão formada, porrada em seguida. Muita gente, uma panela de pressão. Dos quatro, só Clarinda sóbria, os outros já piruetavam em torno de si, orbitando. Pedro a custo dançava com Clarinda ali, num cantinho, bem pertinho-pertinho da cerca e da árvore de limão caiana. Se é que aquilo era dança mesmo, já que Pedro não dança nada. Os dois outros bebiam perto do banheiro, precavidos

          Muita cerveja mais tarde, todos, até mesmo Clarinda, que   tinha bebido alguns copos de cerveja, praticamente estavam de pé por milagre, a gente acha. Nunca beberam tanto. Beberam os calos da mão e os ferimentos do ombro, beberam quase todinho o dinheiro, dinheiro ensopado de suor oleoso e fedorento.

          Do outro lado, gente dançava merengue ouvindo xote, brega em ritmo de carimbó. Só os menos bêbados dançavam como a música pedia. E misturava-se de tudo: mambo, axé music, regae, funk, house... Dava tudo um caldo só, que só indivíduos fora do estado normal poderiam tolerar e, ainda mais, gostar. 
        Pulos, rodopios, piruetas, quedas, encontrões... tudo em favor do desabafo estressado de quem já não é esperançoso de mudança ─ pelo menos para melhor ─ na vida. Salários miseráveis (isto os que têm emprego!), dívidas, ignorância, sofrimento: tudo emana pelos poros, em suores fedidos e misturados... “Bebida e festa é enganote po célebro discansá!”, como dizem alguns. 
        Num repente, do outro lado veio um mundo de gente se socando. Um buraco se abriu ali no meio. Gente em fuga é desesperada! Caem, chocam-se, derrubam cercas e gente. Assim aconteceu com Pedro e Clarinda, machucando-se no pé de limão caiana. Simão viu aquilo. Enquanto os dois se levantavam lentamente (Clarinda, que gostava m e s m o de Pedro, sorria muito; aliás, gargalhava), Simão, com o olho vermelho que nem de saracura, descontroladamente correu e engarrafou a cara de um sujeito.

        O quebra-pau do outro lado se finava. Uns correram de lá esperançosos de poder participar de tão amena questão. E o que viram? Viram um homem de cara ensanguentada, caído, e outro, com um gargalo, bem defronte dele, em pé, trêmulo.

        Num susto, pipoca tudo. Mulheres correndo, berrando estridentes. Homens fazendo covardemente pior. Simão, cercado de mãos com paus, pedras e garrafas. João acode com estacadas. Pedro, levantando-se, exibe um facão. Tudo confuso, incompreensível. Barulhos e gritos. Sangue. Um estampido. Tudo para momentaneamente. Clarinda, que correu para Pedro, cai. Já não fala, já não respira. Desespero de Pedro, que fura mais dois. Dois outros estampidos: Simão. Pobre e estúpido Simão! Pobre Clarinda!

        Horas depois, nas matas das várzeas, os sararás saem das tocas, os pássaros em revoadas sobem e descem das copadas árvores, lembrando confetes jogados na passarela do carnaval. Garças cautelosas saboreiam camarões. As arirambas ariscas já fazem o mesmo, se bem que usando outras técnicas. Os urubus sobrevoam a floresta, todos indo na mesma direção. 
           Mas nenhum dos três observava. O barco estava ainda lá, próximo dos barrancos de tabatinga. A gente deve pensar que os três, ou melhor, os quatro, contando com Clarinda, já passaram desta para uma pior? Será? Vamos ver...

           É madrugada ainda. É perto da festa, ou daquilo que foi uma festa. Várias pessoas correndo incentivadas por uma sirene de polícia.

          Muitos viram o sol nascer pelos balancins (na delegacia, lógico). Muitos. Mas nenhum viu aquela bela cena na várzea. E Pedro e João? Foram presos? Não. Não foram. Os dois estavam ali na várzea, porém dormindo, quase um sobre o outro, ao pé de uma corticeira. Escaparam da polícia entrando num córrego e adentrando as matas dos igarapés, cambaleando, mas já um pouco recuperados pelo choque.

           Esbaforidos, tropeçavam nos gravetos e se arranhavam nos galhos e espinhos das picadas que levavam igarapé adentro.

           ─ Pedro, Pedro... PEEEDRO!

           ─ Quié?!

           ─ Pedro, eles estão mortos?

           ─ Sim!

           ─ Mas será...

           ─ Droga, cala a boca e corre!

           Muito tropeção e queda depois, enfim Pedro desaba no chão, feito árvore de madeira nobre decepada pela motosserra.

           ─ Pedro! Pedro! Quitá acontecendo?

          Um dos dois últimos tiros o atingiu. Bem na barriga. João rasgou a camisa, amarrando-lhe o abdômen para estancar o sangue. Arrastou-o até o tronco de uma árvore alta e, também desmaiou de sono e cansaço.

          Muita hora dormida depois, só João acorda. Pedro, não podia mais. João chorou muito. Pensou ter sido tudo um sonho, mas acordou e... chorou, chorou muito.

          Os urubus voltavam. Já era boca da noite, e a gente pode encontrar João todo ferido e enlameado, próximo ao barco. Escondia-se entre umas touceiras numa das margens do igarapé. Não sabia bem que fazer. Dúvidas multiplicavam-se e chocavam-se em sua consciência. Ia à polícia? Seria preso? E os corpos de Simão e Clarinda, já foram sepultados? Ou foram levados para o IML? Pedro, pobre Pedro! Dormiria sempre ali, ao pé da corticeira e sob a lama que lhe sepultava, o único e verdadeiro amigo?

          João não conhecia muita gente não. Quem o ajudaria? Ele pensava, pensava, não arranjava solução. Situação sem remédio, pensava. Será que estavam procurando por ele? Vigiando o barco? Ali esperaria. Ficaria alerta. 
          Muita ferrada de inseto depois, resolveu nadar até o barco, silencioso, como um tralhoto, tal a habilidade que a gente pode imaginar. Antes de subir, esfregões que tiram lama e mostram lesões, arranhões, cortes. Menos intranquilo, ia subindo no barco, quando notou um sacudir diferente, como se tivesse alguém andando dentro da cabina.

          Acautelou-se. Subiu devagar. Sabendo que o outro já sabia dele a bordo, foi direto à porta da cabina, com a lata, que servia de panela, na mão. Pensou: “Ô vai ô racha!” Abriu. Levou uma pernamancada que atingiu em cheio a lata. João empurrou seu agressor, que na queda perdeu a pernamanca. Engalfinharam-se os dois, caíram em cima do motor, chocaram-se contra as paredes. Luta dura e estranha no escuro. Mas João, que tal qual um bom soldado conhece seu território mesmo no breu da noite, apanhou do chão, que é ao mesmo tempo casco, uma pedra de tijolo, usada em par no fogo, para sustentar panela quando se faz comida nos “tesos”.

          “Prac”, foi o som do choque no crânio do agressor.

          Cansado, assustado, João descansou. Mas pouco. Logo ouve:

           ─ Merreco, Merreco! Quitá acontecendo?

           Ouve aquilo várias vezes e de diferentes bocas.

          Os gritos vinham da margem oposta de onde João veio. Os traque-traque dos gravetos quebrados faziam crer que havia pelo menos uma meia-dúzia de gente.

         Corre, arriba a âncora. Liga o motor. Ouve tiros. Manobra, quase encalha. Consegue, enfim, seguir adiante. Ainda tentam correr na lama da beira. Tentativa inútil: pedras cortantes, mangueiros, espinheiros. Obstáculos de mais. Desistem.

          João acende a lamparina. Está menos tenso. É quando olha o chão. Não vê ninguém. Súbito sente uma, duas facadas. Nas costas. Dor, horrível dor! Vira-se. Um homem de cara ensanguentada é o que vê. Cambaleando, exibe na mão uma faca pingando sangue.

            ─ Ah! Diacho! Tu vai junto! ─ grita contorcendo-se e arriando no chão. 
            Só que antes lhe atira a lamparina na cara, que logo o fogo devorará, não só a cara feia mas todo o corpo; aliás, os dois corpos, o barco também, que lentamente vai decepando ao meio a superfície do rio, ardendo em chamas, até ficar preso às raízes dos mangueiros, que são enormes ali na Curva da Cobra.

          Um imenso par de olhos vermelhos testemunha a cena-tragédia, a gente não pode dizer se plácida ou sinistramente.

         A gente lastima muitíssimo, porque João não leu a manchete que saiu na primeira página dum jornal, à tarde: “Gangue agride e mata casal numa festa nesta madrugada”.

 

FONTE:http://www.komedi.com.br/escrita/leitura.asp?Texto_ID=9251

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