Autora: Rossi Gonçalves *
Moscow, livro de Edyr Augusto, publicado em 2001 pela Boitempo Editorial, apesar de ter recebido algumas críticas favoráveis, na época de seu lançamento, é mais um caso de bom texto ignorado pelos leitores – ao menos aqueles que vivem ao sul do país.
Não houve, em torno deste livro, divulgação, entrevistas, aquelas promoções que tornam um livro vendável. É mais um daqueles livros cuja capa não ajuda muito a divulgação, tamanha a repulsa que ela causa, com sua mistura de corte na pele e sangue fervilhando. Ele ficou, então, discretamente escondido, quietinho, aguardando um leitor mais curioso, disposto aos riscos de uma obra praticamente desconhecida, de autor pouco conhecido, no Rio de Janeiro.
Muito embora tenha surgido – e seu texto se configure como tal - no momento do “deixa o excluído falar”, o seu autor não é presidiário, nem figura conhecida no meio da exclusão. Edyr Augusto Proença é radialista, jornalista, publicitário e autor de peças de teatro, livros de poesia, crônica e romance. Um membro das classes privilegiadas de Belém que, além de ter outras importantes ocupações, é, também, autor.
Edyr Augusto trabalha, em Belém, como assessor de imprensa, na área cultural. Pertence a um seleto grupo de privilegiados – é um “incluído cultural” - que tem todo o tipo de informação à disposição.
No entanto, é o próprio autor que faz questão de ressaltar que, embora seja um representante das classes abastadas, tal fato não o impede de falar de uma realidade que atordoa a todos, independentemente da classe social. E Edyr Augusto parece mesmo habilitado a revelar as vozes das ruas. Moskow apresenta personagens comuns do cotidiano, bem definidos sob os aspectos psicológico, social e cultural.
Entretanto, apesar da participação intensa na vida cultural de Belém, na cidade do Rio de Janeiro, o lançamento de seu livro Moscow teve discreta passagem. Talvez por ter uma ilha de Belém como cenário. Infelizmente, o original texto de Edyr Augusto ficou anônimo, não merecendo mais do que pequenas e discretas resenhas.
Muito diferente é a narrativa. Totalmente indiscreta, perturbadora, estremecedora, sufocante. Moscow é livro que só pode ser lido aos poucos. Com muito exercício para respiração e relaxamento entre um trecho e outro. Muito embora os capítulos sejam curtinhos, não é possível ler um, de uma só vez, com raríssimas exceções. Ler Moscow angustia. Sobretudo porque é preciso parar, mas é imprescindível voltar a ler, já que o pensamento não larga o livro, os personagens, o lugar, de jeito nenhum.
O livro narra a história de um rapaz bem jovem, morador de Belém, junto com alguns amigos, em férias, em Mosqueiro. E a história desse rapaz, que é muito semelhante a dos amigos, é de uma vida de abandono. Sem família – a mãe não tem tempo para ele e é personagem quase inexistente –, quando não está dormindo em casa, está nas ruas, invariavelmente, envolvido em algum delito. Também não tem nome, rosto, nem idade e suas únicas referências são Dondinha, a amiga de infância, e a casa, para as quais sempre volta. Entre estupros, punhetas, porradas e assassinatos ele vai seguindo. E o leitor vai tentando se proteger de tanta violência.
Violência que, diferentemente de narrativas de violência urbana – com tiros, roubos, tráficos -, parece sem sentido, brincadeira, maldade apenas para, por poucos minutos, regozijar-se. São poucos os assaltos com fins lucrativos. Não é dinheiro que eles querem. E o que o protagonista quer? “Não sei o que quero, mas não invejo nada. Nem esses mauricinhos que passam de carro, com roupas da moda. Tenho meu jeans, minha bermuda, meu tênis. Tá bom”. (p.31) Sobra, então, a barbárie. A gangue de Moscow quer sangue, quer desforra imediata, se possível com morte, quer estupro, mesmo que a vítima não seja um objeto muito desejável, quer eliminar qualquer problema da forma mais brutal possível. E quer muito sexo. Consentido ou forçado. Com mulher ou homem. Adulto ou criança. Com fim feliz ou não. Tudo “sem culpa”, conforme anunciado, no início do livro: “Moscow é sobre violência sem culpa” (p.6).
Ao conhecer a gangue de Moscow, parece impossível não fazer referência à Feliz ano novo, conto famoso de Rubem Fonseca, em que um grupo de jovens bandidos barbariza uma festa, com humilhações, estupros, mortes e muita diversão. Esta gangue é representante de um tipo de bandidagem ainda desorganizada e, por isso mesmo, mais assustadora.
No entanto, há fome imensa em Feliz ano novo, o que justifica a barbárie na mansão dos bacanas. Em Moscow, não há jovens famintos, extremamente carentes, em busca de saciar esta necessidade. Os meninos são representantes de classe média baixa - estudam, não precisam trabalhar e têm “um qualquer” para sobreviver.
Remetem, então, aos funkeiros cariocas que, há alguns anos, divertiam-se nos bailes através de uma coreografia que consistia em formar um corredor e atacar, de forma bastante agressiva, os “amigos” do outro lado. Brincavam de brigar e até matavam nesta representação de briga. Ao fim do baile, cumprimentavam-se, saíam juntos e combinavam o próximo baile. Em Moscow, os personagens da gangue parecem representar, também, uma brincadeira de assustar a vítima – normalmente um mauricinho -, estuprar, roubar e até matar.
O leitor, que entra nessa história devidamente avisado, ainda assim perturba-se: “A garotada chama Mosqueiro de Moscou. Chamei de Moscow porque Cacá Carvalho me disse que o livro revira tudo. “M” vira “W””. - afirma no primeiro parágrafo do livro.
E Moscow, nas suas poucas páginas, revira o leitor, também. Revira porque, como já foi dito, por mais sufocante que seja, não é possível largar a leitura. E mesmo diante de um personagem monstruoso, que mata, estupra, humilha, não é possível desejar a sua prisão, nem a sua morte. Ao contrário, causa perplexidade descobrir-se torcendo para que o protagonista se salve, conquiste a mulher que lhe revira a cabeça, continue considerado pela personagem Mara, a coroa por quem ele se apaixona sexualmente, e seja feliz.
A narrativa tem início com um saudosismo: ”Mosqueiro era bucólico. Ali passei minha infância e adolescência, sempre nas férias” (p.5). Embora breve, a descrição da Mosqueiro da infância é interessante, porque é ali que a narrativa tem o seu único momento de tranquilidade, de delicadeza.
Com o progresso da ilha - “Moscow ficou popular, as mansões se desvalorizaram. Hoje há até invasão de sem-terras. Os finais de semana são lotados” (p.5) -, chega, também, a dureza da narrativa, a violência. O prefácio, mínimo, em que o autor faz apologia a sua Mosqueiro, dá lugar àquilo que vai ser uma amostra do que o livro tem a apresentar. “Aquela brisa tinha um sabor especial. A gente sempre fazia isso. Às vezes nem dava certo. Hoje ia. Os barrancos perto da Praia Grande. Ficava para trás sempre um boy desses, procurando empregada. Era tiro e queda. Lá estava o garoto no escuro”. (p.7)
Assim, o personagem e seus amigos partem para o primeiro estupro seguido de assalto, em meio a uma série que a narrativa vai oferecer.
Muito embora o grupo roube a carteira do boy, a turma se diverte mesmo é em humilhar: ”Leva as calças dos dois. Deixa quase nu. Assim eles demoram a sair daqui.”(p.8). A comemoração do bem-sucedido assalto é no “boteco”, entre “cana” e jogos, até o sol surgir e o personagem voltar para casa e afirmar: ”Gosto de férias assim. Mosqueiro de noite. No escuro. Moscow. Eu gosto ”(p.8)
Afirmei acima que a violência em Moscow distingue-se da violência do tráfico, dos grandes centros urbanos. Isso, porque parece funcionar como uma diversão, um passatempo para os personagens. Não há um objetivo financeiro. Mata-se por amizade, por amor, por vingança. Basta uma oportunidade:
Passei lá na Praia Grande sem nem ligar se o casal da véspera estava por lá. A galera já estava no Barba. Ficamos de boba até umas duas. Apareceu o Tomás. Ele precisava da gente. Um cara mexeu com a irmã dele. Mais forte. Apanhou. Agora queria uma forra. O cara é de uma gangue, mas a gente não bota fé. Vamos?(p.12)
Há, no entanto, uma gradação mais cruel da violência que vai ocorrendo sem que personagem e leitor se deem conta. O personagem, notívago, sob efeito constante de drogas e álcool, vai se prendendo em uma difícil trama de sexo e assassinato. Quando em companhia dos amigos, o roubo e o sexo, muito embora extremamente violentos, têm aspecto de divertimento mais ou menos controlado. No entanto, sozinho e alucinado, ele comete erros que assinalarão o seu fim.
Estou andando de volta. Olho para o térreo do Catolé. Um movimento. Uma guria acordada, no pátio. Uns dez anos. Vai dormir, penso. Está apenas de camisola. Eu a chamo, discreto. Uma, duas vezes. Ela vem. Olho para os lados. Ninguém. Erika. Saio com ela de mãos dadas em direção ao barranco da praia. (...) Acordo com o ônibus passando lá pelas seis. Assustado. Há sangue em minhas mãos. Vou para casa. O sol já começa a ferir os olhos. Vou direto para o meu canto. Não durmo fácil. Aconteceu alguma coisa. Olho para as mãos e os braços. Vou à pia e lavo. Sei lá. (p.22)
Apesar da suspeita de algo errado, o personagem carregará essa dúvida por toda narrativa. O assassinato da criança, que comoverá a cidade, através de comentários e insinuações o atormentará e não se esclarecerá, dando à história um toque leve de mistério que, embora não seja o único trunfo da narrativa, é o elemento perturbador desta. Personagem e leitor mantêm juntos a dúvida quanto ao ocorrido naquele lugar, entre ele e a menina.
O assassinato do rival, Beto, é a última armadilha que o personagem cria para si mesmo. A partir de então, aquelas gratuitas peripécias como roubos, estupros e mortes vão tendo consequências que assustarão e extinguirão o grupo.
Com a ajuda de Mara, a sua parceira sexual preferida, ele terá alguns dias a mais de liberdade, escondido no quarto dela. Mais tarde, quando Mara, pressionada pelas filhas, leva-lo para fora da cidade, é através de transes que encontrará sua Mosqueiro: “Agora estou sobrevoando Moscow naquele começo de noite, das praias iluminadas, da Ilha de Amores quieta, da Graça, da minha mãe e os outros. Tão perto, Moscow, mas não deu. Bye”. (p.65)
Engano. Moscow dá, sim. Sobretudo, porque há um protagonista que aproveita todas as oportunidades. O personagem, mesmo em situações perigosas, vislumbra uma alternativa para ganhar. Ganho que pode ser de confiança, de um beijo, de um delírio, de uma mulher “gostosa”. Impressiona como, sem se esforçar, ele consegue se sair bem das situações.
Durante o primeiro estupro seguido de assalto, os seus parceiros seguram o rapaz que está sendo violentado, enquanto ele está com a gata: “Eu fiquei com a gata. Naquele escuro, eu precisado ”(p.7). Situação que se repetirá em outros estupros/assaltos.
Saindo de uma aproximação sem êxito, com Graça, a menina que ele deseja, ele se apropria de uma bicicleta: “Quando ela volta, eu já fui. Estava com raiva. Melhor não falar. Tinha uma bicicleta dando sopa ali no caramanchão do Chapéu Virado. Levei e imprimi velocidade ”(p.11) Assim, o personagem sugere entrar e sair de qualquer situação: A família de Graça está no pátio, ele entra e é bem recebido. Graça se distancia, ele sai sem ser percebido. E em outra situação: “Me deixam entrar. Estão acabando de jantar e vendo televisão. Tomo uma Coca. Depois vão para a varanda. Vou também e participo da conversa da família.” (p.20)
É como se o personagem pairasse sobre as cenas. Ninguém pergunta seu nome, sobre sua família, o que faz. Ele passa por todas as cenas sem se identificar, como se estivesse de passagem e isso fosse suficiente para explicar a sua presença entre grupos tão distintos quanto o do bar do Barba, onde a gangue se reúne; a casa da Mara, a mulher mais velha que ele e a sua preferida sexualmente; a família da Graça, a jovem menina que ele quer para namorada.
Aproveitando a oportunidade, ainda, quase sem ser percebido, possui Dondinha: “Nos acostumamos a transar em silêncio, na rede, eu por trás, segurando seus seios pequenos” (p.19). E, também, aceita o olhar “pidão” da “coroaça” e mais uma vez “se dá bem”: “Vou. É uma coroa. Podia ser gordona, senhora, sei lá. Mas não. É uma coroaça. Cabelo pintado. Mas fica bem ”(p.23)
No estupro à grávida, não participa porque “a gente não gosta de mulher barriguda”. Mas, quando invadem a casa de dois andares, enquanto os outros reviram o ambiente, ele vai atrás da proprietária, no quarto: “Ela estava de camisola. Porra, uma gata. Magrinha, loura, com o bico dos seios aparecendo no tecido da camisola. (...) Se eu fosse o primeiro era melhor. Deixava o pão com manteiga pros outros”.(p.28).
Até quando as contas de tantas peripécias tem que ser prestadas, é ele quem sobreviverá. Parceiros morrem, aparecem desfigurados, são levados pela polícia, desaparecem. Ele foge sem ser incomodado, com a ajuda de Mara. Não foi possível descobrir o interior de Graça, desejo permanente do personagem, mas Moscow lhe reserva um fim digno de herói: uma fuga espetacular, desde a entrada na casa de Mara, passando por todo o percurso, corajosamente, enfrentado, até o delírio final, sobrevoando Moscow.
Bibliografia:
AUGUSTO, Edyr. Moscow. São Paulo, Boitempo Editorial, 2001.
BOSI, Alfredo. Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo, Ática, 1987.
FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. Rio de Janeiro, Artenova, 1975.
FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu
irmão... Trad. Denise Lezan de Almeida. Rio de Janeiro, Graal, 1977.
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva
e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1977.
* Doutora em Teoria Literária pela UFRJ.
FONTE: http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa10/rossigoncalves.html#_ftn1
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