sábado, 15 de setembro de 2012

JANELAS DO TEMPO: MORCEGANDO O TRENZINHO DA HISTÓRIA

Autor: Prof. Alcir Rodrigues

“A primeira pessoa entrevistada por nós é o Sr. José Brígido da Trindade, nascido em 1933, portanto, com 72 anos, residente na Av. Getúlio Vargas, nº. 738, Vila. Nascido em Mosqueiro, passou sua infância, adolescência e parte da juventude na Ilha. Viveu também em Belém durante algum tempo. Atualmente aposentado, como funcionário público municipal por Belém, trabalhou como datilógrafo, escriturário e tesoureiro. Estudou até a 5ª série e depois concluiu o Ensino Fundamental pelo Projeto Minerva. Apesar de mencionar que os fatos às vezes lhe fogem à lembrança, é pessoa de memória vívida, de conversa fluente e bem-humorada, que muito pode contribuir como informante em pesquisas futuras, pela gama de conhecimentos que salvaguarda em sua lúcida mente e sua bem organizada ‘pasta’ de documentos antigos. Reside com sua sobrinha, Neliza, que é também sua filha de criação, pessoa primeira contatada por nós, para nos apresentar de modo mais espontâneo possível (em benefício da entrevista) para seu pai, o entrevistado.”

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SR. JOSÉ BRÍGIDO DA TRINDADE (Foto: Alcir Rodrigues)

“Transcrição da narrativa oral do Sr. José Brígido da Trindade

O Sr. Brígido, como é simplesmente conhecido na Vila do Mosqueiro, concedeu-nos uma entrevista em que nos relatou inúmeros fatos e prestou esclarecimentos relevantes, numa conversa fluente e amigável, na varanda de sua residência. É verdade que tivemos dificuldade na transcrição de seus relatos, visto sermos inexperientes no uso do equipamento de gravação, ficando a fita com trechos quase inaudíveis, por causa de problemas já mencionados nesta monografia. Desta feita, procedemos recuperando trechos de imprescindível importância, salvaguardando a fidedignidade das informações originais. As lacunas, claro, prejudicam a íntegra do trabalho, no entanto todo o esforço fizemos para que os dados correspondam aos originais, e a fala esteja transcrita quanto mais exato seja possível fazê-lo, respeitando as legítimas palavras e opiniões do entrevistado.

Seguem abaixo excertos das narrativas do Sr. Brígido:

Eu gostava de estudar. À noite, pegava a lamparina, acendia a lamparina, e ficava, sabe, estudando. Estudando mesmo. Quando chegava na escola, já tava tudo na cabeça. Então, ia fazer sacanagem... (...) rendia castigo pra gente, né. Por exemplo, no Grupo Velho... Eu comecei a ter raiva de terço, desde aquela altura, que era castigo você rezar o terço... e botava de joelho, que era aquele Cristo que ainda tá lá... desde o Grupo Velho. Botava lá de joelho a gente, sabe. Aquele negócio de ajoelhar no monte de milho, tinha também, aí. Não era fácil, não.

Agora, eles não me botavam de joelho porque... eu ia ter de ficar só com um joelho, o outro não tem nada... (Ele riu bastante, contagiando também o entrevistador.)

Então, tinha uma diretora... uma boa professora, professora Noêmia. Ela teve um problema que ela tinha uma bochecha maior do que a outra. Égua! Mas a mulher, sabe?, era muito inteligente. Mas ela era perversa também. Gostava de dar castigo pra gente. E um dia... o Grupo Velho, ainda... (...)

Aqui o Sr. Brígido conta uma ‘peraltice’ dos tempos de estudante, pela qual ele e seus colegas foram duramente castigados, e tiveram de ficar trancados no banheiro.

Outro trecho relevante:

Eu saí em 46. Tenho o diploma e tudo... guardado. Gosto daquele diploma. E, naquelas alturas, no interior, com 13 anos terminava a 5ª série. Era barra! Mas... Agora, Inglês de Sousa... Não sei por que botaram o nome de Inglês de Sousa. Se bem que eu tenho até um livro dele aqui. (...) Herculano Marcos Inglês de Sousa. (...)

O que passava pela frente era o trem, né, o trem: uma locomotiva movida a lenha, né, com três, quatro vagões. Um dia vinha com três, vinha com quatro. (...)

Então, ela passava lá. Ela vinha lá do Porto Artur, Chapéu Virado, passava pela 3ª Rua. Aí, entrava pela Pratiquara... porque onde é o atual mercado, lá era a estação da...da... porra da maria-fumaça... (...)

Ela vinha devagar, sabe? Dava vontade da gente morcegar... (risos) E terminava a aula e poder... Ela passava bem na frente do Grupo e ela sempre devagar, sabe. Dava pra gente pular... Sabe como é... (...)... estudante... moleque também... (...)

Tornou-se quase impossível prosseguir com esta transcrição, em vista dos problemas já explanados anteriormente. Todavia, cremos já ter do Sr. Brígido, aqui, material suficiente para proceder a uma rica análise.”

“Nas atividades de ouvir, transcrever e “ler” as narrativas pudemos sem quase esforço algum detectar nelas a presença de traços sócio-histórico-culturais que preservam a memória de Mosqueiro (no que diz respeito a aspectos tais como economia, relações sociais, fatos históricos relevantes, geografia local, hábitos cotidianos, eventos cíclicos festivos, variantes linguísticas, etc.). Por exemplo, a narrativa do Sr. Brígido, faz referência a “castigos” impostos aos alunos por causa de ‘indisciplina estudantil’. Um desses castigos era ficar ajoelhado sobre grãos de milho, ou rezar o terço, fruto de confusão entre educação e opressão, religiosidade/fé e temor. São traços típicos e marcantes de uma época e seus valores cotidianos.”

“Análise da narrativa do Sr. José Brígido da Trindade

O Sr. José Brígido, tal qual nosso outro entrevistado que teve relato transcrito, oferece-nos dados de extrema riqueza a ser explorada, de natureza histórica, social, geográfica, pedagógica, religiosa, etc. Em sua narrativa, no início, reporta-se ao uso da lamparina para estudar à noite, o que nos permite a inferência de que energia elétrica não havia no Mosqueiro daquela época (década de 1940) em que ele era estudante. Só décadas depois éque seria criada, pelo Município de Belém, a Usina de Força, que funcionava irregularmente e deixava de fornecer “luz” após as 23 horas. A partir da energia vinda da hidrelétrica de Tucuruí, já na década de 1980, é que passaria a haver energia elétrica na Ilha 24 horas por dia.

Devido à carência generalizada de infraestrutura fornecida pelos governos (estadual e municipal), a educação só atendia a população até a 5ª série, dita ginasial, naquele tempo, no Grupo Escolar do Mosqueiro (do sistema estadual), chamado comumente pelo povo de Grupo Velho, que mais tarde receberia a denominação de Inglês de Sousa16, chamado de Grupo Novo. Essa escola ainda existe: fica na Vila, na R. Tenente Coronel José do Ó (ou, para o povo, 3ª Rua), e atendia toda a Ilha, tendo os alunos que se deslocar dos pontos mais distantes, quase sempre a pé, e tendo que sair bem cedo, para não perder as aulas. Uma enorme dificuldade.

O Sr. Brígido nos informa como era a ‘disciplina’ escolar na época. Sem quase liberdade alguma, aos alunos eram infligidos castigos físicos, como ficar ajoelhado no monte de milho, ou morais, como ficar rezando o terço, ajoelhado (a) em frente a uma imagem de Jesus Cristo. Claro que devemos evitar interpretações anacrônicas, contudo, não podemos deixar de opinar sobre o que pensamos ser equívocos educacionais (no que diz respeito à metodologia e didática de aplicação de medidas “socioeducativas” ‘daquele tempo’) e religiosa (no que diz respeito à mistura de religiosidade/fé e temor). Ambas − educação e religião − impunham valores por intermédio da opressão, do medo, do terror mesmo. Não poderia dar certo, nem em uma, nem em outra, mesmo em se tratando da religião católica, já que o Brasil é a maior nação católica do mundo; tanto que nosso entrevistado diz, numa passagem de sua entrevista: “[...] eu detesto esse negócio de terço [...]”. Diríamos ser, também, detestável a maneira de ‘estimular’ os estudantes por meio da sabatina: quem errasse o cálculo, ou uma data qualquer de um fato histórico, apanhava com a palmatória.

Nosso entrevistado faz alusão ao trenzinho, uma locomotiva do tipo maria-fumaça, que conduzia de três a quatro vagões, ligando a Vila ao chapéu Virado. Buscando apoio em Brandão & Dantas (2004:69), encontramos as seguintes informações:

O primeiro transporte oficial aproximando a ‘Vila’ do ‘Chapéu virado’ foi inaugurado em 1904, o Ferril-Carril, bonde com tração animal, propriedade de Arthur Pires Teixeira. Com o aumento de passageiros, provocado pela instalação da linha fluvial Belém-Mosqueiro, o Ferril-Carril é substituído por uma pequena locomotiva conhecida como ‘Pata Choca’ que se encarregava de levar quatro ou cinco vagões.

Sobre a denominação Chapéu Virado, de uma praia, de um bairro e de um antigo hotel, convém lembrar o seguinte: C. Wanzeller (2005: 47) explica a denominação deste modo:

“[...] Para aquele local, conhecido na época como ‘o lugar onde o chapéu vira’, convergiam vários caminhos, alguns vindos do interior da ilha e outros que levavam à praia, onde os pescadores moqueavam o peixe. O vento, canalizado por esses caminhos, chegava à clareira com grande violência, arrebatando os chapéus de palha da cabeça dos caboclos desprevenidos e lançando-os a distância.”

Já em Brandão & Dantas (2004: 65), encontramos os seguintes esclarecimentos:

Colonos portugueses fabricavam no local chapéus com abas denominadas beiras. Para alguns historiadores a expressão ‘chapéu beirado’ teria se convertido, com a pronúncia portuguesa, em ‘chapéu birado’ e depois ‘chapéu virado’. Outra possibilidade é a da corruptela cabocla que identificava a beira como a parte virada do chapéu.

Nosso informante refere-se a um topônimo: Porto Artur. Era um comendador que possuía um chalé em frente à praia que hoje recebe o nome de Porto Artur, por causa do porto que ficava em frente a sua casa, onde podia aportar o barco que trazia sua família para o aprazível fim-de-semana. Hoje, além da praia, um logradouro também tem seu nome: Trav. Artur Pires Teixeira. A razão de se dar importância a esse ilustre frequentador da Ilha é que foi ele fundador, além da linha férrea, do primeiro e único cinema de Mosqueiro: o Cine Guajarino, que, conforme Pedro Veriano (1999: 40), funcionou de 1912 até 1976.

O Sr. Brígido falou, ainda, de dois logradouros: a 3ª Rua e a Pratiquara. O nome oficial da 3ª Rua é Tenente Coronel José do Ó. É bem comum na Vila esse fato, pois a grande maioria dos moradores costuma nomear os logradouros de 1ª, 2ª, 3ª, etc., até a 8ª Rua. Porém, todas têm nomes oficiais de personalidades históricas que, de um modo ou de outro, foram relevantes para a história do Mosqueiro de outrora. Pratiquara é o nome de uma travessa importante na Vila, bairro mais antigo da Bucólica (que é outra denominação da Ilha). É de origem tupi o vocábulo e originou-se a partir do principal rio que banha Mosqueiro, o Pratiquara, que, em português, significa “rio das pratiqueiras”. Muitos outros topônimos no Mosqueiro são de origem tupi: Mari-Mari, Ariramba, Carananduba, Sucurijuquara, etc.

A expressividade de nosso entrevistado vem de sua espontaneidade ao falar, de seu ótimo humor, da coloquialidade de sua fala. Por exemplo, emprega a palavra ‘morcegar’ que, segundo Houaiss (2004: 1959), significa, no contexto usado, “[...] embarcar ou saltar de (trem, bonde etc.) em movimento.” E, de certa forma, sentimo-nos também com vontade de morcegar, tanto o trenzinho, quanto a narrativa contada, tamanha a vivacidade e importância de suas reminiscências.”

FONTE:http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAQssAF/narrativas-orais-ilha-mosqueiro-memoria-significado

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