terça-feira, 12 de novembro de 2013

A FICÇÃO E A ILHA: O AMOR E A CHUVA

 

Autor: Cândido Marinho Rocha

“Inchado não era nome de gente. O peixeiro chamava-se Bragança – vestígio de nobreza – exercia o ofício de dia, à noite bebia. Boêmio, solteiro, péssimo cavaquista, tirador de desfeiteira nos bate-coxas da Ilha, companheiro ideal de Zozó, de quem jamais dissentiu, dele recebendo apaziguadores níqueis. Então Inchado cedeu-lhe a casa, vestiu a capa negra de guerreiro noturno e, já abonado, foi procurar botecos. Lá sufocaria a sede, abrandaria o frio, evitaria a chuva e fugiria àquele testemunho, que o arrepiava. Da praia vinha o ruído das ondas batendo e, pouco distanciadas, luzes baças de lanternas das vigilengas ancoradas pareciam estrelas brincalhonas sobre a baía. Vento vagaroso ventinho friinho vinha virar, sacudir a copa daquele coqueiro solitário.

Zozó “sentia” que não estava só. Presenças difusas, indeterminadas, aconteciam, pressentia, pressentimento presente. Rumores, sussurros sobre numeráveis, soflagrantes, ressuplicavam-lhe sossego. Ventos, águas, travessuras fanáticas. Paulito rondando, revisando, recurioso – seria mesmo? Abriu janelas para o tempo. Nada, nadinha. Era a chuva batendo amorosa na areia a canção predileta do vento.

Lá ao cabo da praia, pesada e triste, a fábrica Bitar, em cujo interior algumas lâmpadas luziam oscilantes, vivas almas. A praia assim deserta parecia ameaçadora no faz de conta de maus presságios. No interior da pequenina casa daquele Inchado, lamparininha de querosene via-que-não-via Mainha tremendo, sentada, entregue.

Tomado de súbito calor – medo seria? Zozó despiu-se, saiu para o tempo, sob chuva fria, ao vento voluptuoso, parecia escutar gemidos de gatos. Recuar, adiar, pensar? Entidades sutis sussurravam: não! Chuva aconselhando: não! Vozes gerais das alturas e do fundo do mundo: não! O sangue, chefão: não!

Trejeitava em caretas e sombra da luz-que-luz da lamparininha.

Roliço, molhado, pingando, voltou em seguida. Pele do corpo era branca, viu assim Mainha. Sorridente galhofeiro em perguntas vadias, descarado. Procurou a toalha não encontrou. Pediu anágua, que a moça lhe deu retirando-a de sob as saias. Soltou então Mainha o primeiro sorriso da noite. Diferente. Sorriso muito diferente de todos os sorrisos de antes. Enxugou-se, em piruetas, palhaçadas. A moça sorriu mais ainda. Interessada, curiosa, diferente. Luzinha era escassa, mas oferecia sombras reais do corpo luzidio, úmido, saudável, como que encouraçado de “Olho-de-Boto”. Com anágua entre as mãos, como esfregão, pensou ele: “É uma peça a menos no corpo dela”.

E o pensamento, de repente, excitou-o.

Falou afinal, meio sério, meio artista:

-- A chuva é bela. A mais bela coisa da natureza. Quando chove fico a pensar na ausência total dos problemas do mundo. Há felicidade absoluta na chuva. Limpa, purifica, salva. Convida, expões, explica, define, assalta, comove, resolve. Adoro a chuva, a grande música dos trovões, a invisível magia dos ruídos espaciais. Viro santo quando um relâmpago ilumina, rápido, a terra em prece, humilde, submissa, abúlica. Não é?

Sorrindo Mainha afirmou, gesto leve, lindo, liberto.

-- A chuva que cai em gotas prova a existência da natureza em ação, dividindo blocos pesados de água. Cortinas de Deus, querida, cortinas de Deus, líquidas e cristalinas, turmalinas claras e versáteis, diamantes sem dureza, tudo purificado pela destilação, renovando, emprenhando a terra. Gerando flores e frutos e pessoas e almas.

Mainha muda mundiada, caída em mundéu, expropriava-se.

Caçador carinhoso beijando a caça, em velhacas solenizações, grandes gestos mínimos de amor, prelúdios.

Zozó crescia-se, ouvindo canções da chuva sobre as palhas da cobertura da casinha do Inchado. Mainha reduzia-se, ouvindo as canções do amado no sonho da mulher.

Casaram-se, ali.

As testemunhas daquele ato de amor teriam sido Iaras, Botos, Caruanas e Bacuraus.

A chuva seria assim marcha nupcial, acalanto em Bach. O vento representaria o sussurro de vozes variadas, anjos propiciadores. Corais. A praia o vestíbulo, as arcadas do Templo, as palhas de ubuçu que cobriam o casebre; os respingos-goteiras eram levíssimas carícias, felicidade. Turíbulos, incensos estavam e brotavam da lâmpada de querosene. O Sacerdote, impreciso, vago, era de fato o Sonho e a Verdade, combinações vitais.

Os cumprimentos foram apresentados ao amanhecer.

O coro dos caraxués, cantores da manhã, saudou os amantes. As arirambas, que são, em verdade, os famosos Martins-Pescadores, personagens importantes entre umbandistas, voavam sobre a baía em volteios ornamentais.

A chuva passava, o sol vinha também apresentar cumprimentos, beijando o beiral da casa, renovando vidas de sanguinolentas papoulas, restituindo ao casal, em suma, o sentido real da realidade. A luz do dia reduzia o ânimo do amante, já sem ginete e sem asas.

Modorrento, Mosqueiro recebia a claridade lá por cima das copas das mangueiras, folhas verdes douradas, úmidas ainda, em gotas, cascatinhas miúdas. Domingo, a ponte estava sem o navio da linha, deserta, grande, toda molhada. O sino da igreja batia, fino, alegre, promoções. Mainha-Mulher dormia ainda, negligente, livre, na almiscarada rede velha do Inchado. Zozó saiu. Respirou, saudável, refarto. O ar balsâmico mosqueirense, que tanto amava, era-lhe especial naquele domingo diferente. Ergueu a cabeça e, como Príncipe da Renascença, foi levar a notícia aos pais. Marchava galhardo como Pelágio, vencedor de árabes. Glorioso como o Papa na Capela Sixtina. Magnífico como um verso de Bilac. Consciente como um sacerdote.

Inchado também estava na rua, ia à casa apanhar o facão para cortar o peixe da venda.

-- Não, lá não vais. Ela dorme.

-- E meu peixe?

-- Quanto custa o peixe que compraste?

-- Vinte e cinco mil réis.

-- Toma lá. Manda-o deixar lá em casa. Hoje não vais trabalhar. O troco é pra birita...

Inchado exultou. O trabalho na Vila é, sem dúvida, opressor aos domingos, quando as mulheres da cidade chegam e se soltam na praia Grande. Celebraria Inchado muito bem o dia.

E Mainha-Mulher acordava. Silêncio, sol, solidão. Quieta, pensou:

-- Quem irá vestir os meninos? Quem colocará café, chocolate e biscoitos à mesa? Quem defenderá a mãe querida das iras do pai pela fuga?

-- Quem poderia tudo explicar? Quem viesse até Areião ver seu destino.

-- Quem podia ser mais feliz do que ela? Quem seria mais livre e amada?

Mainha-Mulher chorava, ria, sofria, amava.”

FONTE: MARINHO ROCHA, Cândido. “Ilha Capital Vila”- GRÁFICA FALÂNGOLA EDITORA. Belém-Pa. 1973- pp. 160, 161, 162, 163 e 164).

Nenhum comentário:

Postar um comentário