terça-feira, 8 de maio de 2012

A ILHA CONTA SEUS CAUSOS: O JOVEM ADORMECIDO 2

Autor: Cândido Marinho Rocha

 

“Na casa de Anacibe, os acontecimentos decorriam em atmosfera de risos e piadas, pois descobria-se, de repente, que o fantasma do cemitério existia em carne e osso. Era a filha de um bodegueiro lá das bandas do Natal do Morubira, moça de beleza nativa bem acentuada, possuída dos demônios.

Menina criada sem companhia de mãe, irmãs ou primas, isolada, vivendo às margens do deserto mental, sem estudos ou contatos civilizados, foi por isso transferida já mocinha para a Vila, a morar em casa de parentes, de favor. Sua vida passou, assim, a ser mais opressiva. As mortes sucessivas de seus entes mais queridos teriam ocasionado o trauma que desequilibrou sua libido, tornando-a um caso patológico. Estancada a libido, a tensão psíquica aumentou extraordinariamente, tornando-se neurótica. Havia quem dissesse que a menina fora inocentemente levada a praticar o incesto, prática com a qual sua natureza se acalmava. Mortos pai e irmãos, surgira o desequilíbrio. Tornara-se, portanto, incapaz de dominar seus instintos, mas não perdera totalmente a personalidade. Bonitinha, calma, operosa, vivia quase de modo irreal, trabalhando nos assuntos domésticos, sem aspirações senão aquelas que, partindo do âmago da sua natureza, pediam inutilmente. Após uma série de vigilantes cuidados, as pessoas de sua residência, habituadas à sua passividade, reduziram a preocupação com a moça, do que se aproveitava para, à noite, enfeitar-se, dentro do seu mundo coercivo, e sair à rua, a procura de aventuras, abúlica, amoral, magnífica.

A amnésia infantil concedia-lhe a graça do esquecimento quanto aos atos praticados com pai e irmãos, mas sua personalidade vibrava ao descobrir alguém que fosse parecido com eles e tendia nervosamente no sentido daquela pessoa, com os instintos soltos, desenfreados. Mas, dentro de tudo, unia o cemitério à pessoa dos mortos, pois ali os deixara. Em consequência, para ali se dirigia sempre que colhia um admirador inadvertido. Sentia-se mais desesperada ainda, decepcionada, frustrada, irremediavelmente nula quando, às proximidades do campo dos mortos, os admiradores eventuais retrocediam e a abandonavam. Dirigia-se então ao primeiro túmulo, sobre o qual repousava a cabeça e a mente e dormia, na serenidade do imenso silêncio dos sepulcros, sob chuva, trevas ou estrelas. Quando o dia amanhecia, a moça já se encontrava em casa, corretamente aplicada aos seus deveres. Enchendo água retirada do grande poço, limpando o vasto quintal, verdadeiro pomar, apanhando frutas, cantando...

Tornou-se necessário que Anacibe visse à luz do dia a bela mulher das beiradas do Morubira para se certificar de que não fora vítima de assombração.

Desde então, voltou à sua vida anterior, curado, limpo, ou melhor, sujo outra vez, capaz de novas investidas noturnas, conquistas pequeninas e passageiras. Sem histórias.”

FONTE: MARINHO ROCHA, Cândido. “Ilha Capital Vila”- GRÁFICA FALANGOLA EDITORA. Belém-Pa, 1973- pp. 111 e 112.

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