terça-feira, 23 de abril de 2013

JANELAS DO TEMPO: DESPERTANDO PARA O AMOR.

Autor: Cândido Marinho Rocha

Quando o barco partiu, dois vultos se deitavam sobre uma capa de borracha, estendida na praia do Bispo, úmida e deserta, àquela hora.

A madrugada cedia ao alvorecer.

Ali mesmo havia sido, há muitos anos, aquilo que os pescadores e mercadores chamavam de Ponta dos Maristas, porque ao alto, lá em cima, na ribanceira, localizava-se a casa onde os mestres costumavam descansar das lidas do período escolar. Aos grupos, pela manhã, saíam eles a rezar, no hábito comum. E um rumor uniforme de vozes masculinas se compunha religiosa e perfumadamente, com as últimas notícias da madrugada e as primeiras visões do sol, que nascia por trás da Vila.

De alguns maristas ainda são lembrados os nomes: Eloi, Henrique, Bernardo, Luiz, Estevão e Reginaldo, homens de invulgar sabedoria e estudos alguns vindos da França, Holanda, Espanha, Alemanha, outros nascidos no Brasil, para organizar, como realmente organizaram, uma nova mentalidade escolar aqui no Norte, imprimindo à mocidade de então seus princípios de moral e de razão.

Indiferentes à política partidária, dedicavam-se à educação, severamente obedientes aos princípios brasileiros da ordem e da legalidade.

Talvez sem saber, celebravam ali a origem, segundo alguns, do nome daquela ilha bonita e singela – Mosqueiro. Dizem os pescadores mosqueirenses que, naquela ponta, lá em baixo, projetada para a baía, reuniam-se habitualmente quando regressavam das pescarias, feitas então quase que exclusivamente para a própria subsistência. Ali mesmo tratavam os peixes, faziam o moquém, assavam e, às madrugadas friorentas, comiam deliciadamente, com intercalados sorvos de cachaça.

No dia seguinte, as moscas afluíam e, em consequência, começaram a denominar o lugar de Moqueiro e depois Mosqueiro. Versão recolhida entre vários moradores da Ilha, não confirmada, todavia, pela tradição escrita.

Pois foi ali, naquele mesmo local, já abandonado pelos pescadores, tendo tomado o nome de Ponta dos Maristas, que começou a nossa narrativa.

Os dois vultos que se deitaram sobre a capa de borracha, na manhã vacilante e brumosa, compunham um casal de jovens tomado de amor.

-- Não acreditava que pudesses vir.

-- Nem eu que pudesse sair.

-- Como o conseguiste?

-- Uma tia viajou para Belém e assim surgiu o pretexto para vir até a ponte.

-- Faço votos que ela viaje bem e tenha feliz permanência em Belém.

-- Mas foi imprudência, da qual não deves retirar concessões de minha parte.

-- Sei, mas de outra forma jamais poderíamos conversar assim, sem outros ouvidos, em silêncio e proteção completos.

Ela não disse mais nada e o moço começou a dirigir os assaltos, nas suavidades calculadas. A moça, rendida mas não alheia ainda aos seus princípio, seguia a brisa dos carinhos que o rapaz sabia manipular. A manhã era propiciatória, havia entre eles a atração inicial dos corpos jovens, a proteção humilde e silenciosa das ramas úmidas, pendidas sobre a praia, cobrindo-os de olhares que, ali, eram inadmissíveis.

Progrediam. Mas a Ponta dos Maristas era um lugar onde a luz do sol e a luz da pureza chegavam cedo.

E assim foi que o vozeirar dos Maristas acabou por proteger a moça que, num salto rápido, ergueu-se e partiu correndo pela praia, subiu a ladeira, atravessou a Praça da Matriz e, ainda assustada como avezinha alvejada mas não ferida, chegou a casa, coração agitado, remorso em flor.

Por muitos anos havia de ouvir os Maristas rezando, piedosamente, protetoramente, providencialmente.

O moço, surpreendido pela súbita rezaria, incapaz de evitar a fuga da moça, recolheu a capa sobre os ombros e, ao olhar para o alto, viu ainda o corpanzil do irmão Eloi a dirigir o terço.

E sorriu, sinceramente agradecido.

FONTE: MARINHO ROCHA, Cândido. “Ilha Capital Vila”- GRÁFICA FALÂNGOLA EDITORA. Belém-Pa. 1973- pp. 36, 37, 38 e 39).

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