domingo, 26 de setembro de 2010

JANELAS DO TEMPO MOLECAGENS DO PASSADO

 

( Trechos extraídos do livro “Mosqueiro Ilhas e Vilas”)

“O velho Farah (Sr. Raymundo Farah) foi casado com D. Maria de Lourdes Cavalcante Farah de família tradicional e ilustre do Pará. Seus dois gêmeos, Joseph Farah e Alexandre Farah Neto, marcaram época nas décadas de quarenta e cinqüenta, no Mosqueiro, mais exatamente no Farol e no Chapéu-Virado. Conhecidos como “os Farahzinhos”, pintaram o sete desde meninos até quando rapazolas culminaram com uma série de molecagens e brincadeiras, quase sempre sem malícia, sem maldade, sem terceiras intenções.” “Fizeram o diabo em vinte anos de permanente freqüência ao Mosqueiro, sobretudo, à época saudosa do navio “Almirante Alexandrino”. Sediados no casarão dos pais, local centralíssimo para suas operações, puseram em prática dezenas de “casos” que todo mundo conhecia e os atribuía, sem que o pai aceitasse as suas reclamações. Interpelado, Raymundo, com seu jeitão meio árabe-brasileiro, respondia:

-- Qual nada! As minhas meninas são inocentes. Isso é política de oposiçon. Querem atingir Barata mas não podem...”

“Os dois comandaram um grupo grande de moleques da mesma têmpera e geração para uma operação delicada e perigosa. A gurizada propôs-se a organizar uma “procissão”, na sexta-feira santa de 1957, à sua maneira e ao gosto de todos os seus participantes. Mais de sessenta meninos formaram a equipe encarregada dessa empresa, no Chapéu-Virado. Na data aprazada, um deles subiu à pequena cobertura da Capela, alcançando o Campanário. Um fio escuro foi preso ao badalo do sino e conduzido para o prédio em frente, antiga propriedade de Cipriano Santos, sobre o qual já nos referimos, local onde está o Edifício Lílian-Lúcia. Tudo feito na surdina ao cair da noite. Mediante combinação prévia, cada garoto levaria um facho de roupa velha, um lençol e uma vara curta, destinados à roupagem da romaria... Antes, os dois Farahzinhos, com alguns companheiros, prepararam tocos de vela de estearina e os aplicaram fortemente no casco de inúmeros caranguejos vivos que haviam adquirido para esse fim. Lá pelas dez horas com o silêncio da noite de sexta-feira santa, alguns veranistas, ainda à entrada do hotel, palestravam tranquilamente. Hóspedes e pessoas despreocupadas tiravam uma prosa na calma doce da noite mosqueirense.

Pois, em pouco tempo, arrumam-se em canoa vizinha, outros a pé, caminhando pela praia como quem subia a conhecida rampa da praça. Todos encapuçados de branco, de cima a baixo, com os fachos acesos, iluminando em penumbra as areias claras da ribeira. Enquanto isso ocorria, um deles acionava o sino, enquanto outro grupo soltava no chão claro próximo às ondas do rio, aquela série imensa de “velas que andavam” amedrontando a quantos tiveram a oportunidade de assistir a esse espetáculo. Batia o vento, os fachos cresciam para o topo da rua, levados pelos vultos brancos, enquanto repicava febrilmente a sineta da tradicional capela. Em uma só mise-em-scéne, conseguiam os meninos aquela visão triste e ameaçadora, subindo, subindo sempre, ao som característico do chamamento ao templo, enquanto luzes corriam pela praia sem sentido, como visagens esparsas que saíssem das águas correntes da baía.

Uma loucura! Uma loucura dominou a todo mundo que abria janelas e apreciava aquilo que poderia ser um “mau agouro” ou sabe lá o quê...

Na noite negra do dia santificado, pelas onze, D. Carolina do Hotel manda que o empregado luso, Antônio, fosse à capelinha ver do que se tratava. Este sobe, no escuro, pelas laterais do prédio e nada encontrando despenca-se lá de cima assombrado, gritando, para todos ouvirem:

-- Não há nada lá em cima... É visagem, é visagem! O sino está a bater só!

O Russo lembrou-se dos lençóis do hotel, mandando vê-los nos quartos. E enquanto a confusão crescia, a festa dos Farahzinhos chegava ao auge! Dona Carolina gritava, com as mãos à cabeça:

-- Isso é coisa do “Uraujo” não pode ser de outra gente! O “Uraujo”!

Queria referir-se ao João Batista Klautau de Araujo, também terrível, e que nesse tempo fizera boas no Mosqueiro. Assim levava a sua culpa quem lá não estava.

Mais tarde, em verdadeira apoteose, a procissão se dissolveria na descida da praia da mesma maneira como começara. A notícia correu mundo. Chegou aos jornais de Belém. Criou-se polêmica a respeito, pelo desrespeito à data e às famílias católicas residentes na Vila e nos balneários. O Vigário da Igreja de Nossa Senhora do Ó tomou partido a favor da integridade da Procissão do Senhor Morto e no sermão culpou meio mundo pela irreverência daquele fato verificado na Capela do Chapéu-Virado. Em Belém, o órgão católico “A Palavra” exprobrava o gesto daquela meninada, sem qualquer decência para com os atos religiosos da Semana Santa. “As Folhas” de João Maranhão tomaram o partido dos jovens, alegando que a brincadeira não tinha maltratado a ninguém e nem dado prejuízo aos veranistas e o seu sentido era compreensível naquela mocidade que aproveitava aqueles dias para respirar melhor nas praias do Mosqueiro.

Vendo seu nome nesse tumulto sem nada ter participado, o João Batista Klautau de Araujo, bastante aborrecido, pois era cumpridor de seus deveres para com a Igreja, exigiu que os dois Farahzinhos fossem em sua companhia pedir desculpas ao Sr. Arcebispo. O caso precisava do perdão de D. Mário de Miranda Villas-Boas, então, prelado do Grão-Pará. A coisa fora demais. Passara dos limites da própria molecagem do grupo, do qual Batista também fazia parte.

Os dois Farahzinhos logo aceitaram a proposta do companheiro. Pediram audiência ao eminente sacerdote, comparecendo à presença de D. Mário.

Na ocasião desse encontro, João Batista ficou extremamente emocionado, sem poder balbuciar uma só palavra. Nessa situação aflitiva, levantou-se o Joseph Farah, dirigindo-se à figura simpática e acessível do querido Arcebispo:

-- Sabe – D. Mário – (tocando com a mão suavemente sobre o seu belo crucifixo) aquilo foi uma parada gostosa. Nada fizemos que nos condene. Houve até quem achasse que estávamos reproduzindo a “festa do Divino” que se faz em Espírito Santo e Goiás. Uma brincadeira nos dias de folga, quando nossos pais se recolhem e nós aproveitamos para essas farras... sem maldade. Creia, eminência, foi só isso...

Ouvindo displicentemente essa narração espontânea do jovem que acompanhava o colega desejoso de um perdão, D. Mário sorriu, carinhosamente, abraçando-os com absoluta cordialidade, gesto generoso que valeria pela clemência desejada.

Contudo, o Vigário de Mosqueiro, no domingo seguinte, fez realizar uma procissão de desagravo à família católica mosqueirense que exigia essa reparação.

Chegou aos ouvidos do padre que um tal “Batista” havia sido o mentor daquele ultraje no Chapéu-Virado em plenas celebrações da semana santa. Alguém disse-lhe que esse moço estava amesendado no Praia-Bar, próximo à igreja, bebendo com amigos. O padre não teve dúvidas: escolheu um grupo forte de fiéis devotos da Sra. Do Ó e determinou fossem buscar o culpado, pois iria pagar seus pecados levando uma pesada cruz na romaria, da Vila ao Chapéu-Virado. Realmente o fato ocorreu. Batista foi encontrado e, a contragosto, cumpriu a determinação do vigário, mais tarde, mostrando aos Farahzinhos os ombros feridos:

-- Está aqui o que vocês me arranjaram. E ainda por cima, estou por fora do assunto. Isso foi uma violência da qual não me foi possível escapar. E agora?

A verdade – entre risos e lamentações – apurou-se no grupo de que o Batista apanhado para aquele sacrifício era o jovem José da Cunha Gonçalves, que nada tinha a ver com o problema, apenas conhecido por Batista porque seus pais possuíam em Belém a famosa “Casa Batista”, local de bilhares e restaurante, à Av. Portugal, à esquina da Rua 13 de maio... Todos os colegas chamavam-no de Batista e na hora de se encontrar outro cidadão com esse nome (certamente o João Batista Klautau de Araujo, também fora do caso), o pobre Cunha Gonçalves teve que pagar pelos pecados dos outros. Tudo isso foi verídico e nos foi relatado pelo próprio Joseph Farah sem deixar de sorrir, cada vez, que pintava o ódio do Batista, carregando a cruz pesada da Vila ao Chapéu-Virado.”

(Meira Filho, Augusto – “Mosqueiro Ilhas e Vilas”, Grafisa Ed., 1978, págs. 364, 367, 368, 369, 370).

TRÊS MOMENTOS DOS FARAHZINHOS:

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FONTE: “DIÀRIO DO PARÀ”, 1978.

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FONTE: “DIÁRIO DO PARÁ”, 1978.

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FONTE: “DIÁRIO DO PARÁ”, 1978.

Um comentário:

  1. Seu blog � simplismente fant�stico.
    Sou neto do Raymundo Farah, filho do Alexandre Farah(os farahzinhos), e tenho muito orgulho disso. J� compartilhei esse link. obrigado pela postagem.

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