sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A FICÇÃO E A ILHA: Na azulíssima manhã

O cronista presencia uma cena de amor canino.

Por Antonio Contente

Na charmosa Ilha do Mosqueiro, perto de Belém do Pará, não abundam os gatos, mas, desde que me entendo, abundam os cachorros. Como a maioria das casas de veraneio fica grande parte do ano fechada, os vigias que cuidam delas geralmente possuem cães, vira-latas a maioria, alguns poucos com traços de raças nobres de remotas, remotíssimas gerações.

Como nesta época o veraneio na área é baixíssimo, no único hotel viável que o local possui, conhecido como Casa do Haroldo, apenas três apartamentos estão ocupados: este em que habito, um com um casal em lua de mel, mais um terceiro com dois gringos, marido e mulher, pastores protestantes acompanhados de uma penca de filhos.

Ao chegar à praia, pela manhã, as areias não estavam propriamente desertas. Talvez umas dez ou 15 pessoas, em grupinhos separados, o que sempre ocorre diante do hotel. Ah, sim, no começo falava de cachorros, e percebi o instante em que uma cadelinha desceu da calçada para perto de nós. Percebi porque, francamente, ali estava uma cachorrinha simpática. Rabo curto, olhar vivíssimo, e ágil, uma agilidade e tanto. Bastou estalar os dedos e ela veio para o meu lado, animadíssima. Balançava o corpinho, pulava, mexia o toco de cauda. Enfim, acho que é assim que os cães sorriem.

No que nossa confraternização ia em meio saquei, na beira da calçada, nada menos de quatro cachorros. Exatamente como a belezinha que brincava comigo, também vistosos vira-latas. Todos de olho em “Fifi”, que é como eu já batizara a guria de pelo fofo.

Nos instantes seguintes pude testemunhar o começo da disputa. Os marmanjos caíram literalmente de quatro sobre a mocinha que, só então percebi, se encontrava no cio. Prenunciava-se uma disputa braba, amigos, e confesso que a donzela deitou e rolou. Jogou seu irresistível charme sobre o grupo inteiro e, na disputa a dentadas que se seguiu, tive a impressão que a mocinha ficaria apenas com o parceiro que sobrasse vivo. Todavia, a coisa não chegou a tais extremos. Tanto que pude, pela primeira vez, presenciar um caso de, digamos, consenso canino. Um venceu e os três restantes subiram para a calçada. Tranquilos, se colocaram sob a sombra protetora de uma castanheira sapucaia.

Assim, com o eleito, começou o namoro bem perto de mim. O que ganhou a parada era um cachorrinho de pelos pretos, ouriçados, nem de longe o mais pintoso dos disputantes. Porém, o que me pareceu foi que a paixão da cadela por ele não poderia ser maior. Ela desmanchou-se em agrados sobre o sujeitinho e, verdade seja dita, nosso amigo não perdeu tempo. Tratou de fazer logo o que deveria ser feito, só que, após as primeiras tentativas, parou. “Fifi”, rapidamente, voltou à carga com a cascata de carinhos. Dava dentadinhas, fuçava, mordiscava, esfregava o rabinho no focinho do galã; contudo, nada. Após tanta insistência, nova investida do rapaz. Nessa altura dos acontecimentos, além de mim mais umas oito pessoas formavam a assistência. No que o eleito, pela segunda vez, pifou, saiu de nossas bocas o primeiro “Ohhhhh”…

Para encurtar a história, na quarta tentativa do amante as pessoas que formavam a roda já passavam de 20. Acabou sendo então que um jovem, diante de novo fracasso, gritou:

- Brocha!

- Viagra nele! – outro emendou.

- Ora – um senhor ponderou, – vamos devagar com o andor que o santo é de barro.

- Exato – outro levanta o indicador. – Roma não se fez num dia.

- Eu mesmo – volta o primeiro – não tenho vergonha de dizer: minha primeira noite de casado deixou muito a desejar. Já da segunda em diante e até hoje, sai de baixo…

Com a nossa expectativa aumentando testemunhamos, pasmos, outra furada do galã. Nisso os três preteridos, que se mantinham à sombra, na calçada, retornaram à liça. Um deles, o mais bonito, uma espécie de Brad Pitt canino, ataca, firme. Só que, estranhamente, “Fifi” saltou de banda. Enquanto isso murcho, encostado a uma pedra, o já apelidado “Brochonildo” ofegava. E talvez até acabasse dormindo não fosse a volta da cadelinha para perto dele, deixando os outros pretendentes, literalmente, a ver os navios que passavam ao longe.

Uma dentadinha aqui, outra ali, e nosso amigo que ainda não conseguira mostrar do que poderia ser capaz pareceu reanimar. A turma da torcida esfrega as mãos, cheguei a escutar um sonoro “desta vez vai”. O cãozinho toma fôlego, se apruma e se atira. “Fifi” posiciona-se do jeito mais favorável possível, enquanto o amante põe as patinhas onde deveria pôr, se aprumando, se equilibrando. Um balanço pra cá, outro pra lá, o senhor da lua de mel frustrada berra:

- Tá dando certo, amigão, vai que é mole!

- É mole não, vai que é duro! – outro corrige.

- Grudou! Grudou! – um terceiro brada.

Assim que tudo, finalmente, se consuma, ecoa uma enorme salva de palmas da pequena multidão que apreciava.

Arranjado não sei onde, talvez sobra do pique da temporada de verão, estouram foguetes. Até uns improváveis carros buzinaram, e o dono do barzinho ao lado do hotel chama para uma rodada de Cerpinhas. Com a praia voltando ao normal, percebo que ali estava uma bela manhã. Uma bela, uma santa, uma azulíssima manhã. Com as amadas águas do velho Rio Amazonas à minha frente, caminhando para o mar.

 Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular

FONTE: http://50anosdetextos.com.br/2011/na-azulissima-manha/

O autor:

Antonio Contente é jornalista desde 1960. Passou pelo Shopping News, Última Hora, O Globo, O Cruzeiro, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Folha da Tarde, em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Publicou os livros Um Doido no Quarteirão, Editora Soma, O Vampiro Cantador, Editora Soma, e Antes da Estação das Chuvas, Editora Abril. Hoje escreve crônicas para o Correio Popular de Campinas e divide seu tempo entre Campinas e sua ilha na Amazônia, a cinco horas de barco de Belém.

FONTE: http://50anosdetextos.com.br/autores/

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