terça-feira, 20 de dezembro de 2011

JANELAS DO TEMPO: O CANHÃO DO CHAPÉU VIRADO

 

Sabe-se que, lá pelos idos de 1943, quando estava em curso a Segunda Guerra Mundial, uma tropa de infantaria ficou aquartelada na conhecida Rua da Bateria. O antigo prédio do Colégio Nossa Senhora do Ó funcionava como quartel-general, enquanto os prédios da Escola Municipal Donatila Santana Lopes e da FUNPAPA serviam de alojamentos para os soldados.

Na praia do Chapéu Virado, que, no século anterior, fora palco da sangrenta batalha da Cabanagem, instalou-se um canhão, uma espécie de avançado defensor da Capital, pronto a enfrentar embarcações inimigas que adentrassem a baía.

Essa peça de artilharia, a princípio, despertara estranheza e temor na população simples da ilha. Depois, certa indiferença, acabando por servir de motivo a situações jocosas, bem ao gosto do autêntico mosqueirense.

Para conhecer melhor os detalhes dessa história, vamos recorrer ao grande escritor da literatura paraense Cândido Marinho da Rocha:

“Certo dia, um capitão de artilharia e um tenente de infantaria dirigiam o desembarque de uma peça de artilharia na praia do Chapéu Virado. Os brasileirinhos tímidos daquelas orlas espantaram-se com a novidade. Perguntavam-se:

-- Mas então que é isso já?

-- A guerra é nossa também?

-- A guerra não é do povo de lá de lá?

-- Como então eles vão poder atacar a gente?

-- Já viram que coisa pesada e triste como esse um aí?

-- E agora, se eles vierem?

Respostas esquivas, miúdas, assim:

-- Melhor prevenir que remediar.

-- Que sabemos nós de guerra?

-- Esse um tenente Carlindo não fala pra gente?

-- Só porque está fardado, não é? Esqueceu da gente? Das festas da Babá e das serenatas com o finado Estrela? Axi...

-- Ele até que faz que ri por cima do galão, mas falar mesmo, necas.

-- Deve ser respeito a ess’ outrão capitão “disque” Luiz Felipe.

-- Deve ser, deve ser – cantavam os brasileirinhos.

A peça, ali, pescoço estirado, com a venta na direção da baía, muito vigilante, soldadinhos elegantes ao lado, em faceirices, difíceis.

Moreninhas brasileirinhas encabuladinhas chegando, de tardinha, mansinhas, apalpandozinhas o bichão, em tremuras delicadas. Risos delas. Sisudez dos soldados, defensores do litoral brasileiro.

Até que o canhão era bonito, mas não dava tiros. Era aquilo ali parado como jacaré dorminhoco, jaburu pensativo, coruja rasga-mortalha, gavião do dia, espiando longe. Alguns meses depois da instalação, vencidos os primeiros temores, provado que a peça era mesmo mansa, parecença de maracajá com pinta de onça, como onça mas sem onça ser, os brasileirinhos das beiradas já se divertiam com a imobilidade do bicho.

-- Tu já viste como ele nem pisca?

-- Tu já viste como se parece com ponte de buriti em cama de lama?

-- Nem vento nem tempo faz ele bulir.

-- Nem sobe nem desce, nem vai nem vem.

Eram assim, ingênuos, brincalhões, humoristas, ausentes dos fatos das longas profundas verdades das guerras. Às vezes, quando o sol parecia muito vermelho, muito grande, ao descer do outro lado e mergulhar como que na baía, os brasileirinhos comentavam:

-- Chiiii, cunhado, hoje a guerra foi feia. Vê como o sol está melado de sangue. Aquilo é sinal de matança por lotes.

Mas, já na seguinte úmida madrugada, na rede pobre, longe iam dos brasileirinhos os tristes pensamentos da guerra.”

“Não se sabe como foi que começou a brincadeira. Quando os chocalhantes ônibus passavam em frente ao canhão, gritavam todos:

-- Olha o bicho!

Como que a comando, a turma se curvava nos assentos para que, diziam, não fossem atingidos por disparos.

Acabou incorporado à paisagem. Crianças brincavam perto, sem medo algum. Reuniam-se mocinhas à noite ali sob a proteção da arma amiga, e cantavam, namoravam e eram felizes.

Paradoxalmente, foi um dia de tristeza quando chegaram barcaças à praia para conduzir a Belém aquele pedaço da História da Humanidade. Retirava-se decentemente da mais pacata e amorosa ilha do mundo, sem um tiro sequer.

Os oficiais diretores da operação, obsequiados pelos moradores, não eram mais considerados invasores, haviam cumprido com o dever para com a ilha, que parecia sorrir, contente. Todos queriam ajudar a empurrar a peça, todos queriam falar a Carlindo, velho amigo, e com orgulho, viam-no assim, porque fora habitual freqüentador de festas e serenatas e praias. Bem bonito, farda verde-oliva, perneiras, talabarte, duas estrelas azuis em cada ombro, quepe aprumado, postura correta, a colaborar, na qualidade de Encarregado dos Serviços de Embarque da Região.”

(FONTE: MARINHO ROCHA, Cândido. “Ilha Capital Vila”- GRÁFICA FALANGOLA EDITORA. Belém-Pa, 1973- pp. 178, 179 e 180)

Nenhum comentário:

Postar um comentário