terça-feira, 29 de novembro de 2011

JANELAS DO TEMPO: MOLECAGENS DO PASSADO 2

Autor: Augusto Meira Filho

“Em uma das viagens de Belém para o Mosqueiro, pelo Alexandrino, os dois Joseph e Alexandre Farah, em companhia de colegas do mesmo tipo e padrão, resolveram criar o que chamaram de homem-bosta. Desejavam apurar como os cavalheiros austeros das mansões nobres do Mosqueiro se comportavam diante dessa palavra e dessa coisa hedionda que se chamava bosta!

O que fizeram, para obter uma resposta à sua indagação filosófica e moral?

Reuniram em vasilhame próprio uma porção de trampa e, quando todos dormiam, eles, aos pares, colocariam tal material nos portões das casas, nos trincos, nas maçanetas, dificultando seu uso. Quem conheceu o Mosqueiro daquele tempo sabe que os ônibus da Prefeitura passavam de madrugada, para o transporte de passageiros que se destinavam ao navio e a Belém. Esses veículos paravam em frente de cada vivenda, apanhando gente. Geralmente, mal acolhiam a freguesia de um bairro e estavam lotadíssimos. Ora! Quando eles chegavam à estrada do Farol, vinham cheios, sem lugar, e era um verdadeiro sacrifício tomar-se lugar naquelas circunstâncias.

Pois bem!

Os Farahzinhos e sua troupe infernal passaram fio de arame fino amarrando as folhas dos portões, impedindo, assim, que logo abrissem ao primeiro contato. Depois, como dissemos, aplicaram bosta em toda parte.

O pobre que se destinava a Belém, muitas vezes sem o café da manhã, mal colocava o casaco e apanhava a pasta de serviço, estava de espreita na passagem da viatura. Perdida, estava tudo liquidado. Raramente esses ônibus voltavam uma segunda vez para receber os retardatários. E foi isso que aconteceu a dezenas de veranistas, habitualmente fregueses, na madrugada, daquela espécie triste de transporte, da praia à Vila, quando saboreavam rapidamente um café no Lacerda ou no Padre Serra.

Imaginem os leitores de que essa meninada louca se dava ao prazer mórbido de acordar cedo para apreciar a desgraça alheia. O passageiro despedia-se às pressas da família e avançava para o portão. Fechado com arame, era difícil abri-lo com presteza. Vendo essa impossibilidade, o freguês pulava o muro sempre baixo e entrava apertado no veículo, causando a maior decepção. Suas mãos estavam cheias de merda, exalando cheiro desagradável. E não havia como lavar a imundície e era impossível regressar a casa para tal fim. Nem lenço dava jeito. Cada qual queixava-se para o vizinho e imaginava-se de quem teria partido semelhante absurdo. Quem? Repetiam em uníssono: “Os Farahzinhos. São uns demônios neste local. Uma praga! Uma desgraça social!”

Acontece que era hábito normal dos moradores da redondeza comparecerem à Missa domingueira das 8 horas, na Capela do Chapéu Virado. Senhoras, moças, crianças, rapazes, cavalheiros jamais faltavam àquele compromisso religioso.

No domingo seguinte a esses fatos que contamos, sentiu a esposa de Raymundo Farah um completo descaso, desinteresse por sua pessoa, diferente das vezes anteriores, com certa repulsa das vizinhas e amigas. Claro que isso afetaria a distinta senhora que nada tinha a ver com o caso das madrugadas pestilentas, comentadas em toda parte. Chegando a casa, chamou o marido reservadamente e expôs-lhe o fato ocorrido, lamentando-o, constrangida, e achando que as molecagens dos meninos estavam metidas nisso. Como sempre, o esposo discordou. As ‘meninas” eram inocentes. Perseguição da oposiçon, nada mais. Oposiçon! Sim! Oposiçõn!

Os dois, conhecendo o temperamento da genitora, deram um jeito de escutar a sua queixa, escondidos no quarto contíguo ao local do encontro. Ficaram matutando, preocupados, duplamente. Pela verdade do que ela dissera e pela ingenuidade patente do pai sempre negando as travessuras dos filhos gêmeos.

Cedo veio a ideia de apagar da história as dúvidas da mãe sem prejudicar o pensamento do pai. Concordaram, naquele mesmo instante, de efetuar a mesma operação no portão de sua própria casa. Assim, o velho Raymundo participaria da desgraça imunda imposta aos seus vizinhos e ficaria claro que os filhos nada tinham com a estória da merda nos muros. Não fariam aquilo com seu genitor. Sim!

Assim pensado, assim feito!

Na manhã de segunda-feira, o Sr. Farah viveria o mesmo vexame da vizinhança. Ao sair da casa velha, apressado, deixando a esposa no terraço, daria com as mãos num monte de bosta, colocado nos trincos, nos portões, em toda parte do muro antigo de sua vivenda tradicional. Ele não perderia a linha. Ao contrário, sentindo o mal realizado, retornou correndo com as mãos estendidas, dizendo à esposa que já estava aflita com aquele inesperado retorno:

-- Veja, dona Lordes, olhe aqui nas minhas mãos. Quanta imundície! Borraram o portão de fora, e isso é uma prova do que afirmei. Não foram nossas “meninas” que fizeram aquelas molecagens aí pelo Farol. São inocentes. Sim, dona Lordes, eu tinha razão. Mas vou agora apurar quem fez isto aqui no Mosqueiro. É o cúmulo, o máximo da falta de educação, de respeito aos moradores do bairro.

Foi desse modo – caros leitores – que Alexandre e Joseph livraram-se do problema e ainda confirmaram sua confiança naquele pai admirável que nunca aceitou suas malandragens.”

(Meira Filho, Augusto – “Mosqueiro Ilhas e Vilas”, Grafisa Ed., 1978, págs. 374, 375 e 376).

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