domingo, 1 de maio de 2011

JANELAS DO TEMPO: O COMANDANTE DA VITÓRIA

Autor: Claudionor Wanzeller

Era o ano de 1957. Aquele princípio de noite da terça-feira gorda já estava envolto em sombras espessas, quando ouvi o som de tambores de couro de jiboia marcando a batida africanizada do samba. Movido pela minha curiosidade infantil, saí pela porta dos fundos da cozinha de chão batido, onde jantava, e corri no saguão perfumado pelas rosas de todo-o-ano, sem lembrar-me do medo da escuridão, que povoava de fantasmas as minhas noites. Abri, rapidamente, o portão de madeira do cercado da frente e, saindo à rua arenosa mal iluminada pela fraca luz da velha Usina, pude ver o Bloco da Vitória, na despedida daquele carnaval. Os foliões, muito animados, carregavam bonitas e coloridas alegorias luminosas, espécies de lanternas japonesas em forma de estrela, meia lua, bola e antigo lampião. Aos meus olhos de criança, o efeito era realmente espetacular, pois essas luminárias produziam incessantes reflexos multicoloridos nas fantasias alvi-azuis, conferindo-lhes um aspecto de luxuosidade. Logo adiante, bem perto da minha casa, o bloco parou. Os brincantes, numa derradeira exibição ao público da redondeza, estavam em frente à Padaria Vitória, origem dessa manifestação carnavalesca.

Antigos moradores da ilha e muitos veranistas daquela época sabem que essa panificadora, pela qualidade inigualável de seus pãezinhos, conquistara imensa freguesia capaz de formar filas enormes só para comprar o saboroso produto. A disputa era grande pelo pão de cada dia. Minha avó, inclusive, não morreu antes de saborear o pão torrado da Vitória comprado na hora, o qual molhava como de costume, em café fresco e fumegante. Alguns dias de quase jejum e o desejo, naquele momento crucial, de comer o pão da Padaria do Mundiquinho. Fora seu último pedido feito à minha mãe e de pronto atendido. Depois de comer, fez recomendações, abençoou todo mundo e, rezando, deixou a vida com a dignidade de quem soube viver os seus oitenta e quatro anos. Isso aconteceu em dezembro de 55.

Não pretendo, porém, continuar falando agora da minha avó, Dona Adelina Correa de Miranda Matta, a Dona Sinhá – tratamento que trazia dos tempos do Império. Também haverá outra ocasião para contar a história dessa famosa padaria, que outrora se chamava Alice. Minha intenção, sobretudo, é focalizar a interessantíssima figura do comandante da Vitória nos seus áureos tempos: o Mundiquinho Bastos. Para melhor retratar a vida desse mosqueirense, achei por bem recorrer a uma entrevista que ele mesmo concedeu a Laury Garcia, a qual foi publicada no Jornal do Mosqueiro, em julho de 1985:

“Seu nome é Raimundo de Oliveira Bastos.”

“Mundiquinho, como é mais conhecido, nasceu na Ilha do Mosqueiro, no dia 25 de novembro de 1915, às 20 horas, dia consagrado à Santa Catarina.”

“Filho de José de Oliveira Bastos, português, e de D. Joselina de Vilhena Bastos, brasileira, de cujo casamento nasceram 10 filhos, Mundiquinho tinha um tio, irmão de seu pai, chamado Joaquim, que era dono da Padaria Carioca, localizada atrás do mercado da Ilha, e da Padaria Central...”

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MUNDIQUINHO BASTOS (FOTO: LAURY GARCIA, 1985)

Aos 10 anos de idade, Mundiquinho começou a trabalhar na Padaria Carioca. O emprego destruiu os sonhos da infância de menino pobre, que tinha que acordar diariamente às 4 horas da manhã, para iniciar o dia de serviço, de lá para o grupo escolar e depois para casa. O jogo de bola, a peteca e o papagaio não fizeram parte da sua infância e a palavra que escutava diariamente dos tios era: Vai trabalhando que um dia terás alguma coisa na vida. Mas o menino triste queria viver o presente, como faziam os meninos da sua idade.

Aos 18 anos perdeu o pai, passando totalmente à custódia dos tios. Aos 19 anos, cansado da rotina da vida, casou com D. Inocência dos Santos Bastos, com quem teve um filho: Hiolando dos Santos Bastos, funcionário da Aeronáutica em Belém. O casamento durou alguns anos, vindo a separação.

Mundiquinho veio para Belém conseguindo um emprego de Taifeiro da Amazon River depois transformada em Snapp e hoje Enasa, onde passou quase um ano viajando para o Acre, Rio Madeira e Porto Velho. O mar não era o seu ideal, a ausência das delícias da terra lhe deixavam saudoso. Mundiquinho voltou para o Mosqueiro, continuou a trabalhar com seu tio, que sempre prometia lhe deixar alguma coisa quando ele morresse.

Em 1941, Mundiquinho tentou novamente outra profissão, veio para Belém, para ser condutor de bonde da Paraelétrica. Após 9 meses, seu tio Joaquim mandou lhe buscar para que ele voltasse à Padaria, e as promessas tornaram a se repetir: O dia que eu morrer deixo alguma coisa para ti. Mundiquinho voltou ao ninho antigo.

No ano seguinte, seu tio Joaquim falecia. Um ano depois, o filho legítimo do Sr. Joaquim pediu a padaria onde Mundiquinho trabalhava. O tio não lhe deixou nada em cartório e o filho de seu Joaquim era o único herdeiro de tudo. Estavam desfeitas as esperanças e os sonhos do menino pobre, que trocou a infância pelo trabalho.

Estava na hora de começar tudo de novo, e talvez com muita facilidade, pois Mundiquinho era um homem acostumado ao trabalho, embora marcado pela ingratidão. Foi aí que ele alugou a Padaria Alice, na Rua Comandante Ernesto, onde ficou até 1964, quando se aposentou e entregou os negócios a um de seus filhos.

Mundiquinho... conheceu a população da Ilha composta em sua maioria de pescadores, conheceu os primeiros imigrantes que eram japoneses, espanhóis, peruanos e portugueses. Viu nascer a Fábrica Bitar, que segundo ele trouxe grande desenvolvimento para o Mosqueiro. Viu serem fundados clubes sociais e esportivos como Pedreira, Fabril (que era da Fábrica Bitar), Botafogo, Progresso, Mosqueiro e Independência.

Embora não tenha tido infância, Mundiquinho viveu intensamente a mocidade; mesmo sem dançar, sem beber e sem orgia, ele foi um homem de muitas mulheres. Andava quilômetros a pé, atravessava de montaria, enfim, não havia distância que impedisse de conquistar a mulher desejada. Aos 23 anos de idade, sua conquista amorosa já contava com um número expressivo de 300 mulheres, entre elas várias estrangeiras.

E foi nas suas andanças atrás de mulheres que Mundiquinho deparou inúmeras vezes com Matinta Pereira, Lobisomem (porco que vira gente) e muitas coisas que até hoje não sabe explicar.

Um dia de chuva e relâmpago, caminhava pela Rua Siqueira Mendes com a 5ª Rua, quando encontrou uma trouxa grande, que rolava pelo chão. Ele se desviou e, ao dobrar a esquina, Matinta Pereira apitou no seu ouvido.

Um dia, na Praça 3 de Maio, ele se defrontou com um Padre sem cabeça. Na esquina da 3ª Rua com a Rua Pratiquara encontrou uma galinha com muitos pintos que não lhe deixou passar.

Uma quarta-feira, Mundiquinho foi à festa da Maroca Soares na 4ª Rua, para encontrar com uma namorada; quando estava parado na porta da festa, passou a seu lado uma mulher branca, cabelos compridos e descalça que lhe chamou a atenção. Ele seguiu a dita mulher, que passou pela Igreja Matriz, entrando na rua que vai para a Praia do Areião. Mundiquinho entrou rápido na padaria onde trabalhava, e mandou o empregado limpar o forno que voltava logo, e saiu em direção à mulher que já ia mais distante. Ele apressou os passos; ela desceu à praia e sumiu em direção ao mar, quando bem próximo um forte assovio lhe ensurdeceu.

No dia seguinte, ao contar a estória aos pescadores, eles já tinham conhecimento; outras pessoas já tinham visto e afirmavam ser uma Bota que saía da Praia Grande e descia na Praia do Areião.

Mundiquinho conta que na Rua Siqueira Mendes pela madrugada se ouvia muita gente rezando, como se fosse uma procissão.

Um dia ele ia de montaria por um igarapé quando deparou com uma cobra, com mais de 6 metros de comprimento por 2 de largura. De outra vez ele apanhou uma montaria para voltar para casa; eram aproximadamente 3 horas da madrugada. Como de costume colocou a perna para fora para o primeiro impulso. Ele sentiu que sumiu (como se fosse um desmaio); quando já estava distante, ouviu uma voz longe, que lhe alertava que não estava voltando para a Vila, e sim indo para as cabeceiras do rio.

Mas todas as assombrações que viveu não foram suficientes para impedir, que ele se amedrontasse e se restringisse dos braços femininos. Todo dia era dia em busca de uma nova conquista amorosa, o que lhe vale hoje uma prole de 23 filhos. Na sua juventude bem vivida, Mundiquinho não era chegado a companhias, geralmente andava só. Mas lembra muito de um amigo que lhe acompanhava em suas andanças e testemunhou muitos fatos aqui contados: Joaquim Agrassar (pai do Joanilson, proprietário da Voz do Mosqueiro).

Mundiquinho não se queixa da vida. Acha que valeu a pena o trabalho árduo que enfrentou, as mulheres que conquistou e a maneira como viveu. Viajou bastante, teve oportunidade de conhecer Rio de Janeiro e Portugal, onde passou dois meses.

Financeiramente está bem, desfrutando de conforto, dos carinhos dos filhos e de D. Raimunda Couto Figueiredo, sua atual mulher.

Das ingratidões, apenas a do tio Joaquim lhe marcou.

Com a saúde abalada por uma diabetes, já perdeu duas falanges do pé direito, o que lhe obriga a se amparar em uma muleta. Mas não perde a fé em Deus, e nem deixa de ser o ardoroso torcedor do Paysandu que sempre foi, motivo pelo qual, até hoje, a Padaria Vitória permanece pintada com listras azuis e brancas.

A infância sem brincadeiras, o trabalho, as mulheres e as assombrações hoje recordadas lhe fazem voltar ao passado, e nós do JORNAL DO MOSQUEIRO, satisfeitos. Porque essa é a sua vida.” (Laury Garcia)

Mundiquinho Bastos faleceu ainda na década de 80. A padaria não existe mais nem o Bloco da Vitória, mas o nome do seu comandante permanecerá, pois está intimamente ligado ao folclore e aos velhos tempos da Ilha.

FONTE: Jornal do Mosqueiro. Ano I – nº 2 – 1985.

Um comentário:

  1. com os olhos cheios de lágrimas, li essa linda reportagem falando sobre esse grande homem que foi mundiquinho bastos, meu avô diquinho. Esse avô carinhoso, amoroso, cuidadoso que me deixou uma grande saudades. Lembrei dos primeiros anos da minha vida ao lado de meu avô, foram momentos unicos, convivendo no meio de pães, biscoitos, pato, galinha, tartaruga e até uma jibóia vivia naquela casa, mas tudo era maravilhoso, e eu criança tudo me encantava. Me lembro das madrugadas em que ele me acordava só pra tomar açai com ele. Sei do seu amor por mim e o meu por ele, e mais feliz eu era porque nossos aniversario era no mesmo dia, 25 de novembro. É meu avô, enquanto eu viver vc viverá dentro do meu coração, lembrando das suas conversas e de seu amor por mim !!
    sua neta Sara Jane Bastos

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