quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

JANELAS DO TEMPO: AS VIAGENS NO ALEXANDRINO

Autor: Augusto Meira Filho

Já falamos nesse fabuloso barco, no texto deste trabalho. Mas o seu lado pitoresco e popular ficou para esta tentativa de retratar seu funcionamento durante dezenas de anos, na linha Belém-Mosqueiro. Ao que se sabe, o 1º barco a vapor que fez a linha de Belém à Ilha do Mosqueiro foi o “Gaivota” da Companhia do Amazonas, também proprietária do “Tucunaré” que nesse tempo fazia a ligação Belém-Pinheiro. Depois uma empresa de alemães, nos idos de 1915, colocou dois navios: “Mosqueiro” e “Soure” para a comunicação fluvial entre a capital e o Mosqueiro. No correr da grande guerra, esses estrangeiros retornaram à Europa, deixando sua firma em mãos de brasileiros que a incorporaram (aos seus bens pessoais) passando a dirigi-la sem qualquer interferência de seus verdadeiros proprietários. São fatos dos idos da primeira guerra mundial e que os jornais de Belém registraram. Mais tarde, o Sr. Alberto Engelhard também teve um vapor de sua firma, servindo na linha do Mosqueiro. Denominava-se “Valparaíso” e dele foi despenseiro o conhecido pintor paraense e violoncelista da sinfônica do Belarmino Costa, o artista Andrelino Cotta.

Passada essa fase, o Serviço de Navegação do Estado chamou às suas atividades o transporte de passageiros e cargas, de Belém até àquele balneário.

Com a instalação da Port of Pará, companhia concessionária da construção do nosso porto, o navio “Almirante Alexandrino”, que já servia ao Mosqueiro, foi entregue àquela nova empresa e daí começa a sua via-crucis que duraria quase meio século.

Ainda muito jovem viajamos no “Alexandrino”, ao tempo em que a passagem de 1ª classe era 1.500 réis e a 2ª 600 réis. Aos domingos, duas viagens de ida e volta Belém-Mosqueiro. Pouco ou nada existia na ilha de interesse além do Murubira e um começo do Ariramba. A vida do Mosqueiro se circunscrevia à Vila e ao Chapéu-Virado. A partir da primeira década do século, o ferro-Carril, instalado da Vila àquelas praias, atraía maior número de visitantes e de veranistas à velha e tradicional região do Chapéu-Virado. Conhecemos e percorremos toda essa distância, pela animada frequência dos bondinhos, sobre os quais já comentamos. De início, o Vapor Almirante Alexandrino tocava 5 minutos em Pinheiro (Icoaraci), o mesmo fazendo no regresso da Ilha a Belém. Foi sempre tradicional a viagem aos sábados, às 2 horas da tarde. À hora certa, invariavelmente, o barco dava seu “último apito” que, na opinião do professor Cécil Meira, era um palavrão que soltava de despedida do calor e do rebuliço da cidade. Logo o vento gostoso da Guajará tomava conta do navio e todos respiravam felizes, embora, apinhados pelas cadeiras, corredores e passadiços que acumulavam gente de ponta a ponta, sempre andando à procura de nada. E lá se ia o barquinho cheio de passageiros, adultos, crianças, moços e velhos, na mesma sinfonia de ansiedade para a chegada à Vila do Mosqueiro. Os companheiros de bordo conheciam os segredos de todo o mundo e a viagem, com o correr dos tempos, passaria a ser objeto de copa e cozinha da vida do belenense. A palavra “Mosqueiro” sempre foi sinônimo de libertação, de paz, de lazer, de felicidade. Dizia-se comumente:

-- Mosqueiro – Delícia das crianças, paraíso das mulheres, inferno dos homens! Visto sob certos aspectos, aquele nosso tão falado e querido balneário, muitas vezes, se revelava, para nós, um verdadeiro sofrimento. Podemos dar testemunho pessoal, quando, certa vez, fizemos 20 dias de viagens diárias em dezembro e 30 em janeiro, completando 50 dias ou 100 viagens Belém-Mosqueiro, seguidas. Às 5 da tarde já a bordo para descer; às 4 da manhã, despertado à porta da rua, esperando o ônibus – que vinha trôpego pelas estradas, trazendo em seu bojo o dobro da lotação. Perdido aquele transporte, só a pé se poderia alcançar o barco na Vila e isso o fizemos muitas vezes, nas madrugadas de luar e de inverno rigoroso. Chegamos a fixar mais de vinte posições sentadas no percurso de duas horas, tempo gasto em cada linha, e ainda na dependência das marés.

Um dia – nesse tempo de cinquenta dias de viagens seguidas – foi que o Comandante à última viagem, nos chamou junto a seus comandados e falou gravemente:

-- “Meus colegas, nosso amigo completa hoje 50 dias neste barco. Isso é uma façanha que precisa ser registrada por nós. A partir de hoje, nosso passageiro será considerado “Piloto Honorário” do navio Alexandrino. Fazer essas viagens por obrigação, como o fazemos nós, marítimos e servidores da empresa para a qual trabalhamos, não é nenhum sacrifício. Mas, fazê-lo por devoção à família e ao Mosqueiro, é qualquer coisa de admirável. Parabéns, pois, e saiba que agora será nosso piloto honorário.” Não sabemos se merecido ou não esse prêmio.

A verdade é que, aos fins-de-semana, obter um lugar seguro no navio do Mosqueiro era uma vitória excepcional. Obter lugar, mesmo em pé, outra esperança. E receber convite do comandante para “subir ao seu Camarote”, seria a maior dádiva para quem já se propunha ir mesmo no balcão do café ou pendurado em qualquer parte do porão, entre foguistas, lenha, carga, animais, lixo e calor. A sede torturava a garganta e uma cervejinha bem gelada seria uma delícia. Mas como chegar ao Bar do Marçal? E pedir à dona Lícia nos servisse logo? Uma loucura sair do lugar, para um drinque qualquer, um refrigerante para as crianças ou um sanduíche para a mulher. Dada a partida do Galpão, cada um se ajeitava, nas cadeiras, no chão, nas bagagens, no porão imundo. Foi depois de uma temporada dessa feição que compusemos o seguinte soneto:

                                       “Velho Alexandrino”

Quatro e meia. O sol é ardente, o galpão cheio

De gente confusa em louco borborinho

Bagagens soltas, crianças de permeio

Como pássaros em fuga de assanhado ninho!

Caras que vão e vêm, ano após ano...

Do mais alto verão ao pleno inverno

Cabelos que encanecem no dever insano

De na vida sofrer e inda viver no inferno!

 

No velho pavilhão, onde o mormaço

A alegria transforma em mísero cansaço

O santo coração de um povo peregrino...

No barco... um turbilhão de corpos oprimidos

Qual sinistra galera, onde os gemidos

Cantam da morte o derradeiro hino...!

 

O verso procura retratar a paisagem do navio do Mosqueiro em dia de viagem, no começo das férias de julho, por exemplo. Aos sábados e domingos, a coisa era bem pior, era dantesca, sobretudo, na volta para Belém, àquela hora da tarde quando o navio apitava no trapiche, com gente ainda correndo pela ponte à espera de um canto qualquer e chegar a Belém, em paz. Que drama! Que lembrança! Que recordação!

Contudo chegava-se em casa. Um banho, uma rede, um ar tranqüilo de praia e logo todos os sofrimentos desapareciam por encanto e já se ficava cuidando da volta. Foi assim que educamos e criamos uma prole numerosa, edificamos nosso Diamante e ali mesmo iniciamos a luta pela rodovia e pela ponte. Quem se fez mosqueirense nessa época nada temeria para o futuro. Tudo viria para melhor!”

 

(MEIRA FILHO, Augusto. “Mosqueiro Ilhas e Vilas”- ED. GRAFISA, 1978- pp. 358, 361, 362, 363 e 364) clip_image001

Um comentário:

  1. Olá, gostaria de fazer referência ao Comandante Ernesto, que foi um dos comandantes deste navio, o qual foi homenageado tendo o seu nome em uma das ruas de Mosqueiro.

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