terça-feira, 22 de junho de 2010

JANELAS DO TEMPO: RAIMUNDO, O BOI E A COBRA

JANELAS DO TEMPO

RAIMUNDO, O BOI E A COBRA

Podia a rasga-mortalha voar baixo sobre o terreiro rasgando a noite com seu grito estridente, podia a Matinta Pereira assobiar insistentemente nas cercanias pedindo tabaco, podia o lobisomem uivar a distância namorando a lua cheia, mas a turma não desistia do carteado, geralmente regado a branquinha e defumado pelos porroncas enrolados a capricho em folhas de abade. Alheios a manifestações sobrenaturais, porém atentos à movimentação das cartas do baralho já viciado, os jogadores venciam as horas e o sono, em meio a muito blefe e muita prosa, contando lorotas.

Fazia parte do grupo infalível Nego Tuira como era conhecido Raimundo Santana Oliveira, pescador afamado que nascera na ilha, em 29 de agosto de 1.902. Naquela noite do ano de 1.916, em meio ao jogo de baralho, surgiu-lhe a idéia de criar uma brincadeira, que animaria as festas juninas. Os amigos aprovaram e, assim, nascia o Pai do Campo, o primeiro boi-bumbá do Mosqueiro

Na época, boi que se prezava tinha licença da Polícia. Tuira pagou dez tostões e quinhentos réis pela primeira licença do Pai do Campo e dois mil réis pela segunda. Depois ganhou licença para três anos.

A cada ano a brincadeira ficava mais animada e, no encerramento, Tuira pegava duas ou três piraíbas, produto da sua faina diária, para fazer uma boa farra por uns três dias.

O boi era um sucesso pelas suas toadas jocosas ao som de tambores de couro de jiboia, seus vaqueiros reluzentes em vidrilhos, seus índios bastante emplumados, o Pai Francisco e a Catirina, personagens engraçados que provocavam o riso nas pessoas mais sisudas e a gargalhada gostosa na boca da molecada.

Pai do Campo urrou por estas paragens até 1.982.

Como se não bastasse a história do boi, aconteceu também a história da cobra. Cobra Grande sim, senhor! Na ocasião, Nego Tuira trabalhava no Hotel Farol e, para chegar lá, caminhava invariavelmente todos os dias pela praia Grande. Sucedeu que, certo dia, aproximando-se distraído da linha d’água, foi enlaçado inesperadamente por uma enorme sucuri, dez ou doze metros, talvez uma prima distante daquela Cobra Grande encantada que assombrava os pescadores na ilhota do Amor, lá na praia do Farol.

O homem morreu – devem estar pensando – que só anta é capaz de se livrar da sucuri, arrebentando o bicho. Morreu nada! Logo o Nego Tuira! Pescador de nome e de fato não anda sem faca em beira de rio ou de igarapé. E, na luta formidável, deu-se a vitória do homem, pois Tuira acertara uma facada na cabeça da cobra, escapando do abraço fatal.

Se a sucuri morreu não sei eu, que o monstro sumiu no fundo das águas. O que sei é que Nego Tuira continua bem vivo na história da ilha e na alma coletiva do nosso povo.

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